Horum omnium fortissimo sunt Belgae.
De todos os povos da Gália, os que mais acumulam cargos políticos são os Belgas.
Júlio César. Comentários sobre a guerra da Gália
Recentemente foi tema internacional a recusa da Bélgica em assinar o CETA, tratado comercial entre o Canadá e a União Europeia. Contudo, não foi exatamente uma recusa, mas uma impossibilidade. Ora, expliquei alhures a notável complexidade institucional da Bélgica (1), um pequeno país com cerca de onze milhões de almas e sete (!) instâncias administrativas: três regiões (a Valônia ao sul, Flandres ao norte e Bruxelas no centro), e três Comunidades Linguísticas (a Comunidade Francesa – recentemente rebatizada de Federação Valônia Bruxelas – a Comunidade Flamenga e a Comunidade de Língua Alemã), e mais o Governo Federal.
Na última reforma administrativa – penosamente negociada durante 541 dias entre 2010 e 2011 – foi decidido que não haveria hierarquia de poderes entre as sete instâncias administrativas. Isto significa que qualquer decisão no âmbito da União Europeia ou internacional deve ter a expressa concordância dos sete governos. Em relação ao CETA a Valônia recusou-se a assiná-lo porque julgou que não havia garantias claras o suficiente quanto à proteção da sua cambaleante economia (2). Falou-se, então, que três milhões e meio de cidadãos estariam bloqueando cerca de quinhentos milhões (3). Mas este não é o tema deste artigo, é apenas um exemplo de como pode ser muito complicado ser político na Bélgica... Mas que, por outro lado, pode ser extremamente rentável.
Explico: com sete instâncias administrativas com os seus respectivos parlamentos, mais uma miríade de estatais e paraestatais, deve-se imaginar que haja muitos cargos administrativos a serem ocupados e, por outro lado, que nem todos têm o desejo de seguir na carreira pública, e que a sociedade necessita de outras funções: comerciante, dentista, professor etc. Então, como fazer para ocupar todos estes cargos? Ora, é simples, terrivelmente simples, um político belga pode ocupar simultaneamente inúmeros cargos públicos, e isto se chama entre eles “acumular cargos”, e, como veremos, muitos políticos deste pequeno país podem ser considerados “acumuladores”. Em um site chamado Cumuleo o barômetro do acúmulo de mandatos encontramos exemplos capazes de horrorizar até mesmo um Brasileiro, acostumado com os mais extravagantes e antiéticos “costumes” da sua classe política (4).
Então, vejamos. Um certo Elio di Rupo, então Primeiro Ministro deste país, acumulou, em 2014, nada mais nada menos que quatorze cargos públicos, mas... “Apenas” três eram remunerados (5). E que cargos seriam estes? Como já escrevemos, o de Primeiro Ministro, mas, igualmente, de Prefeito da cidade de Mons, de Presidente do simpático Festival Internacional do Filme de Amor, Presidente da Zona de Polícia Mons-Quévi, Presidente do Partido Socialista, Presidente do Instituto Emile Vandervelde (Fundação de estudos do Partido Socialista), Presidente do Conselho de Polícia de Mons, entre outros. Podemos imaginar o eclético Primeiro Ministro entre uma reunião com o seu gabinete ministerial e uma reunião com policiais, enquanto atende uma ligação de um enfurecido cidadão que se queixa das condições deploráveis do calçamento da sua rua. Mas Elio di Rupo é um valão, e o que se passa entre os flamengos, que gostam muito de gabar das suas supostas eficiência e honestidade?
Nada de muito diferente. Bart de Wever, o político flamengo mais poderoso do país, acumulou no ano de 2015 dezessete cargos, sendo que “apenas” três lhe serviam para fechar as contas no fim do mês: ele era Deputado Federal, Prefeito da cidade de Antuérpia e Presidente do partido N-VA – Nova Aliança Flamenga (6). Mas foi, igualmente, administrador de onze diferentes Instituições estatais ou paraestatais (como a que administra o Porto de Antuérpia, um dos maiores da Europa, diga-se de passagem), e Presidente de outras três instituições, como a VlaamsPers, Radio-en-Televisie-Instituut VZW (uma emissora de Rádio e Televisão). Ora, é mister aquiescer que de Wever não deve ter muitas horas de sono e que seja detentor de uma vasta erudição em diversas áreas de saber (7). Pode-se dizer que os políticos belgas estão reinventando o conceito renascentista de “homem universal”, e se deve acrescentar que todo século tem os “homens universais” que merece (Leonardo da Vinci deve estar se revirando na sua tumba).
Mas poder-se-ia imaginar que haveria uma espécie de “campeão dos acumuladores de cargos públicos”? Se existe, este é, sem dúvida, o flamengo Ludwig Vandenhove, político do SP.a. (partido socialista flamengo), que, no ano de 2014, foi o autor da façanha de acumular… cinquenta e oito cargos, sendo que “apenas” três eram remunerados. E, como de hábito, na sua extensa lista de cargos pode-se encontrar um pouco de tudo: Deputado Estadual, Secretário Municipal (isto não seria um “conflito de interesses”?), e administrador e Presidente das mais variadas e diversas instituições estatais e paraestatais (nada menos que cinquenta e seis!). Ora, Vandenhove deve ter, certamente, o dom da ubiquidade, que deve, aliás, ser o dom mais partilhado nesse pequeno país europeu (8). Porém, lembremos, “apenas” três dos cargos eram remunerados. Então, quem seria o “campeão do acúmulo de cargos remunerados”? Este existe e se chama Koen Kennis (NV-A, partido nacionalista flamengo), que, no ano de 2015, dentre os quarenta cargos nos quais ele estava “pendurado”, dezessete eram remunerados (9). Não é por acaso que a dúvida pública da Bélgica está quase sempre em torno de 100%, a sua pesadíssima estrutura pública não é nem um pouco barata (10). E, para concluir, cabe-se perguntar quem teria criado tal estrutura. Ora, quem adivinhar ganha uma cerveja Duvel (11).
notas
1
LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. Bélgica. O quebra-cabeça de línguas, etnias, partidos e governos. Drops, São Paulo, ano 15, n. 084.08, Vitruvius, set. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/15.084/5295>.
2
DUCOURTIEUX, Cécile. Découvrir l’application CETA: le blocage wallon met en danger les négociations d’autres accords de libre-échange En savoir plus sur. Le Monde, Paris, 24 out. 2016 <www.lemonde.fr/economie/article/2016/10/25/ceta-le-blocage-wallon-met-en-danger-les-negociations-d-autres-accords-de-libre-echange_5019657_3234.html>.
3
Mas poderia ter sido ainda mais surreal: se o parlamento da Comunidade de Língua Alemã, que representa cerca de oitenta mil pessoas, tivesse se recusado a assinar o CETA, diante de quinhentas milhões de europeus...
4
Quanto aos políticos belgas, cabe certo matiz: LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. O político que não amava o seu Estado... e que o confessou. Drops, São Paulo, ano 15, n. 091.05, Vitruvius, abr. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/15.091/5491>.
5
CUMULEO. Verbete: “Elio Di Rupo”. Cumuleo – Le Baromètre du Cumul des Mandats <www.cumuleo.be/mandataire/11412-elio-di-rupo.php>.
6
CUMULEO. Verbete: “Bart De Wever”. Cumuleo – Le Baromètre du Cumul des Mandats <www.cumuleo.be/mandataire/11423-bart-de-wever.php>.
7
Em 2009 ele venceu um programa televisivo de quiz, chamado “De Slimste Mens Ter Wereld” (“O homem mais inteligente do mundo”), e, entre os temas recorrentes estavam as séries norte-americanas. STROOBANTS, Jean-Pierre. Télévision belge: Bart De Wever est-il "L'homme le plus intelligent du monde"?. Le Monde, Paris, 07 jan. 2011 <www.lemonde.fr/europe/article/2011/01/07/et-pendant-ce-temps-bart-de-wever-joue-dans-l-homme-le-plus-intelligent-du-monde_1462149_3214.html>.
8
Quando Edmar Bacha criou a Belíndia, metáfora de certo país Sul Americano, ele deveria estar se referindo tanto à miséria de parte da sua população quanto à qualidade da sua classe política.
9
CUMULEO. Verbete: “Koen Kennis”. Cumuleo – Le Baromètre du Cumul des Mandats <www.cumuleo.be/mandataire/4810-koen-kennis.php>.
10
E a situação de torna ainda mais complicada se pensarmos que, ao contrário do que normalmente se imagina, a Bélgica não é mais um país próspero: “É a realidade da nossa sociedade atual. Hoje, perto de 40% dos bruxelenses vivem na pobreza. Ela atinge agora uma grande parte dos trabalhadores. Mesmo com um salário mensal eles não conseguem mais a sustentar um custo de vida cada vez mais elevado”. RTBF. Travailleurs, les nouveaux pauvres – L'immersion de 7 à la Une <www.rtbf.be/info/dossier/7-a-la-une/detail_travailleurs-les-nouveaux-pauvres-l-immersion-de-7-a-la-une?id=9443428>. Ou, ainda: “Esta semana o jornalista Valentin Boigelot fez uma descoberta assustadora. Em pleno coração de Bruxelas, a alguns passos dos altos prédios do Bairro Norte, se esconde uma favela [Bidonville no original]. Ao abrigo dos olhares, famílias e crianças vivem em construções precárias feitas de placas de metal e de caixas de madeira. Com a aproximação do inverno, o seu maior medo é o de enfrentar o frio.” RTBF. Le bidonville caché au cœur de Bruxelles – Les jours d'après de 7 à la Une <www.rtbf.be/info/dossier/7-a-la-une/detail_le-bidonville-cache-au-c-ur-de-bruxelles-les-jours-d-apres-de-7-a-la-une?id=9443425>. Tradução do autor.
11
Duvel significa, em algum dialeto flamengo, Diabo.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima é arquiteto e urbanista graduado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Especialista em Filosofia Contemporânea pela UFES, Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em História e Teoria da Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP e Estágio Pós-Doutoral pela FAU USP.