A história é hoje lenda: era 2007 quando, depois do fim de uma relação amorosa e a dissolução da sua banda, Justin Vernon, sem casa e de volta a sua terra natal no Wisconsin, imenso interior dos Estados Unidos, resolveu mudar-se para uma barraca de madeira no meio de um bosque em propriedade de seu pai. Neste período de isolamento nasceu um dos discos mais representativos dos anos Zero: “For Emma, Forever Ago”. O disco era basicamente um revival folk-rock, mas por entre as cordas do violão, sufocadas pela neve, e o silêncio das noites invernais rompido pelo lamento de um coração que sofre, já era possível encontrar a semente da revolução sonora que a música de Bon Iver viria a experimentar nos anos seguintes.
A trajetória musical atravessa três discos (e um EP), uma trilogia de descoberta e transformação, feita por contaminações eletrônicas, sons sintéticos e relações humanas, que conduziu o cantor americano a sair de si para alcançar multidões, passando pelo espaço psicogeográfico das paisagens majestosas do Midwest.
Os primeiros dois capítulos desta discografia foram acolhidos e apreciados por crítica e público no mundo todo, mas o mesmo não pode ser dito sobre o último dos três discos de Bon Iver, “22, A Million”, lançado em setembro de 2016 depois de cinco anos de silêncio.
Uma obra complexa, que dissolveu as certezas de quem se apaixonara do coração aos pedaços cantado em “Skinny Love” – no primeiro disco – e da gélida aventura no pântano de “Towers” – no segundo –, mas que já tinha dado um primeiro sinal de vida na colaboração com outro gênio do Midwest, Kanye West, no vocoder da faixa “Woods”.
“22, A Million” nasce novamente do sofrimento e da vulnerabilidade de um ser humano, mas que, desta vez, não olha para o coração mas sim para a mente, para as pessoas, para os outros. As guitarras sutis e leves deixaram espaço para uma complexa estratificação de samples e sons digitais. A necessidade de colocar uma distância entre o artista e a “louca multidão” se traduz em uma imensidão de filtros, como escudos ou armaduras. O esforço é tanto que Justin chegou a inventar um novo sintetizador que permite a modulação de sua voz ao vivo. “Faces are for friends – Friendship is for safekeeping – Family is everything” (Rostos são para amigos – Amizade é para preservação – Família é tudo) é o mantra que Vernon escolheu para este disco. Um pensamento que atravessa as dez faixas do disco, desde a dureza do sentimento de finitude em 22 (OVER S∞∞N), até se dissolver na doce abertura de dias sem número em “00000 Million". Como o gelo nos dias de sol de um inverno que parecia infinito, a armadura a pouco a pouco fica mais fina, até mostrar a terra, fértil, pronta para retomar a vida.
A seleção que proponho traça exatamente este percurso, começando por “Skinny Love” – relíquia antiga do primeiro Bon Iver, mas patrimônio dos talent show do mundo todo – e tentando evidenciar todas as passagens fundamentais que levaram a concepção de “22, A Million”: a estratificação de vozes em “The Wolves”, a estrutura construída entorno ao silencio em “Creature Fear”, o vocoder de “Woods”, a potência dos instrumentos em “Minnesota, WI”, a aura pop de “Beth/Rest” até a reprodução integral do último disco, que espero chegue a ser, depois deste percurso, mais acessível e claro para todos vocês.
nota
NE – Texto curatorial para a audição de música O degelo metálico – a música de Bon Iver, que acontece no dia 27 de abril de 2017, no projeto Marieta. Mais informações em https://www.facebook.com/events/1682317502064958.
sobre o autora
Guia Cortassa (Milão, 1982) é uma escritora de música e cultura. Colabora regularmente com publicações especializadas, como The Rumpus, Lound and Quiet, Gold Flake Paint, The Quietus, Rivista Studio, entre outros.