Flávio Império (1935-1985) teve uma atuação múltipla: foi cenógrafo, artista e arquiteto. Cursou Desenho na Escola de Artesanato do MAM-SP entre 1956 e 1958 e formou-se arquiteto pela FAU-USP em 1961. Dedicou-se ao ensino, em especial em cursos de Arquitetura. Entre outras questões sua aproximação à cultura material e às manifestações populares ajudou-o a redefinir sua produção. No início de seu trabalho com cenografia, na peça “Morte e vida Severina” (1960), adotou uma linguagem seca, concisa, com materiais precários, causando impacto pelo despojamento e pela radicalidade estética que refletia as condições da chamada “realidade brasileira”: precárias e mínimas. Pode-se dizer que um desdobramento dessa prática tenha ocorrido na sua produção arquitetônica junto a Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, cujas pesquisas incluíam habitação popular feita com recursos escassos, mas incorporando e incentivando os saberes do trabalhador na construção.
Fez parte do discurso de Império o elogio à “inteligência construtiva” do povo brasileiro, que, conforme suas palavras, “com palha, taquara e terra resolve todos os problemas de ‘design’ desde o chão até o teto”. Certa vez, numa carta de 1978 à irmã Amélia, sintetizou essa capacidade de invenção com a expressão “inteligência prática” e a comparou a sua própria postura no teatro.
Embora não sejam a parte mais relevante de sua produção, em diversos momentos de sua trajetória resgatou os saberes tradicionais, como nos documentários que realizou sobre tecelagem e tapeçaria de Minas Gerais ou nas serigrafias e pinturas feitas a partir de imagens de santos, usadas como bandeiras nas festas populares. Sua relação com o “povo brasileiro” se aprofundou em seus escritos após suas viagens pelo Nordeste, a partir de 1977. Lá realizou trabalhos de artes plásticas e pesquisas sobre a linguagem e o modo de pensar e a prática dos artesãos.
Um pouco antes, em 1974, Império fora chamado à Cuiabá MT, para fazer a reforma de uma casa afim de transformá-la em loja de roupas e de objetos de arte. Enquanto elaborava seu projeto, escreveu em seu diário um pequeno texto (1) em que analisa a situação local da cultura, constatando a oposição entre a postura “das elites” e o modo de vida popular, o qual chamou nossa atenção.
Este texto sobre a viagem e o processo de construção da reforma, muito bem escrito, indica suas dificuldades para atuar numa região distante dos grandes centros urbanos, apontando sua consciência dos impasses do artista engajado e da situação contraditória em que se encontrava.
Começa fazendo um estudo arquitetônico e antropológico a partir da descoberta de um ambiente muito menos idílico que suas fantasias sobre o lugar, onde pensava que existissem florestas, animais e índios: “No lugar de floresta só encontrei ‘serrado’ queimado e muito derrubado. No lugar da extrema umidade, um calor duro e seco. Quarenta e dois graus sem brisa nem garoa”. Quando chega à análise da arquitetura de Cuiabá, percebe que ela apenas refletia o gosto da alta classe ao reproduzir a “arquitetura vulgar e de consumo” de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Avaliando a casa que reformará, nota que anteriormente ela havia sofrido mudanças, tendo sido cortado seu beiral e acrescentado um frontão. Decide, então, que este seria o princípio norteador de seu projeto: levar ao limite a “maquiagem” já presente na casa. A partir disso, passa a se dedicar intensamente à reforma.
Relatando seu processo de trabalho, escreveu:
“Um dia, não sei bem se de calor ou de cansaço, eu me vi sentado no chão rodeado de poeira, bambus, panos, tintas e pincéis com a cabeça apoiada na mão, sozinho, achando que ia desandar num choro de auto-piedade, mãos machucadas, calejadas e doídas de trabalhar [...]. Foi quando me lembrei da gente do Coxipó, um rio e bairro de Cuiabá, e acabei tendo um acesso de riso nervoso. Era tresloucura querer mudar o mundo com as mãos, em 20 dias enquanto as gentes do lugar faziam bem pouco por dia” (2).
Decide revisitar o bairro do Coxipó e se depara com um ritmo de vida distinto, harmonioso e sincronizado à natureza. Dedica um poema ao povo do Coxipó que versa sobre sua sintonia com as árvores, plantas e seus artesanatos feitos de barro. Termina afirmando sua alegria de viver.
Sua escrita criava, assim, a oposição entre a elite “internacionalizada” e uma cultura popular “local e autêntica”. Na verdade, enquanto se interessava pela cultura local e se “identificava” com ela, trabalhava para a elite. Por suas palavras percebemos como pouco a pouco tomava consciência de sua incômoda posição de agente da mudança, veículo das modas aspiradas pela elite provinciana, que ele próprio criticava.
A partir desta constatação aprofundou os conceitos do seu projeto de reforma. Assumindo uma postura crítica diante dos contrastes, exacerbaria a questão da construtividade local e da arquitetura que reproduzia a moda das capitais do leste brasileiro tratando a fachada como “máscara” e o espaço interior da casa como um “cenário”. Montaria desta forma uma estratégia que visaria promover a conscientização pela exacerbação e explicitação do absurdo concebendo a ambientação da loja como uma fantasia de teatro. Nas suas palavras, “abria-se uma ótima oportunidade de criar uma arquitetura-cenografia, palco para a vida cotidiana de quem recebe gente à procura de roupa-sonho. [...] Queria preparar o espaço cênico para esse super musical-caboclo” (3).
Essa “paródia” se completava pela decisão de acrescentar ao cenário-vitrine da loja um grande santo de barro, feito pela “gente do Coxipó”. Império, sabedor de que aquela peça não fazia parte dos objetos apreciados pela elite, decidiu incorporá-la à sua arquitetura-cenografia.
Exala do texto de Império a consciência do fim próximo do modo de vida do Coxipó, assim também como da impossibilidade de incorporá-la ao processo de modernização em curso. Chama a atenção a posição desconfortável em que se encontrava enquanto arquiteto convidado a reformar uma loja de moda. O seu problema fora encontrar o distanciamento exato para fazer sua crítica, o que resolve pelo recurso à paródia e à ironia, lembrando as estratégias da produção pós-moderna.
Império não foi o único artista nessa época a se encontrar nessa situação. Lygia Pape e Hélio Oiticica também lidaram com a questão do popular neste contexto tão distinto ao do nacional-desenvolvimentismo. Uma produção de Pape, o filme superoitista “Our Parents” (1974), tem o mesmo tom melancólico presente no texto de Império. Testemunhando as notícias da construção da Transamazônica, a artista seleciona diversas imagens de índios então veiculadas pela mídia e tornadas correntes na época, e responde a esse contexto de uma maneira particular. Por meio do recurso do close, se aproxima progressivamente das imagens promovendo uma empatia entre o espectador e os índios ao recortar poses, gestos e expressões de homens, mulheres ou crianças, destacando sua humanidade e universalidade e quebrando, assim, estereótipos.
O caso de Flávio Império, a viagem a Cuiabá e sua identificação com “a gente do Coxipó”, mostra justamente os impasses de um artista engajado nesse momento em que as esperanças prévias depositadas no “popular” se esvaíam na exata medida em que os frutos do “milagre econômico” amadureciam. O “popular” se transformara quase num signo entre outros no período em que a produção artística e arquitetônica adentrava no mundo da mercadoria. O texto de Império demonstra sua coragem de assumir sua má consciência e a sua consciência da necessidade de outras estratégias pra construir uma crítica nesse momento.
notas
1
O texto de Império foi recuperado pela pesquisadora Lívia Loureiro Garcia na Fundação Cultural Flávio Império e encontra-se presente em: GARCIA, Lívia Loureiro. Memorial para Exame de Qualificação. Campinas, Unicamp, 2011.
2
IMPÉRIO, Flávio (1974). In GARCIA, Lívia Loureiro. Op. cit., p. 117.
3
Idem, ibidem, p. 121-122.
sobre os autores
Vanessa Rosa Machado é arquiteta, mestre e doutora (IAU USP São Carlos, 2003, 2008 e 2014). É autora do livro Lygia Pape: espaços de ruptura (2010). Tem estudos na área de Artes, com ênfase em Arte Brasileira Contemporânea.
Fábio Lopes de Souza Santos é arquiteto (FAU USP, 1980), Master of Arts (Royal College Of Arts, 1984) e doutor (FAU USP, 2000). Realizou diversas exposições de artes plásticas. É professor doutor do IAU-USP. Atua principalmente nos temas arte e cidade, identidade nacional e artes plásticas.