Agradeço muito à professora Angélica Alvim (1) o honroso encargo de proferir uma palestra sobre a minha formação acadêmica nas comemorações dos setenta anos desta faculdade. Pertenci à sua primeira turma e, portanto, estou formado há 67 anos e realmente teria muito a dizer sobre a minha vida profissional; no entanto, por justa prudência, serei comedido nesse mister, preferindo falar do exercício da carreira dos arquitetos em geral.
Fiquei também emocionado por ser da quarta geração de minha família a frequentar esta instituição. Minha bisavó Palmira Rodrigues foi a primeira brasileira a lecionar na famosa e pioneira Escola Americana, ainda na avenida São João; minha avó Algina, ainda criança pequena, lá aprendeu a ler e, depois, estudou na cidade de Sorocaba na diminuta escola fundada pelos seus pais junto à igreja mantida pelo reverendo Antonio Pedro de Cerqueira Leite, meu bisavô, pertencente à primeira leva de pastores presbiterianos brasileiros. Minha mãe Júnia, por sua vez, filha de fazendeiro de café em Minas, estudou internada em Lavras na instituição educacional Kemper, daquele campus mackenzista distante de São Paulo. Daí, o meu envaidecimento com este convite para falar com vocês certamente também ligados a esta benemérita instituição.
A professora Angélica determinou que eu falasse da minha formação acadêmica. Tratarei dessa ocorrência, mas antes de tudo, creio necessária uma dupla abordagem: a do aluno e a da escola. E, como ambas se interagiram. A arquitetura é uma profissão que necessariamente envolve o profissional em variados entendimentos: os programáticos, os da legislação vigente e os da técnica construtiva a serem envolvidos no projeto. Em sua incumbência o profissional há de se envolver com aspectos históricos, psicológicos, legais, construtivos, estéticos e, sobretudo, à interação dos espaços.
O professor Howard Gardner, da Universidade de Harvard, lançou um novo enfoque nos seus estudos sobre nossa inteligência. Disse esse pesquisador que, na verdade, existem sete inteligências e não uma só, como vulgarmente supomos. Existiriam, segundo ele, a inteligência intrapessoal ou emocional; a inteligência lógico-matemática; a inteligência linguística; a inteligência espacial; a inteligência musical; a inteligência corporal-cinestésica; e, finalmente, a inteligência interpessoal, que compõe a classificação própria da teoria das inteligências múltiplas. As pessoas podem possuir concomitantemente algumas delas, umas mais desenvolvidas que outras e a predominante é aquela que irá nortear as atividades ou profissões das pessoas. Diz, por exemplo, que Mozart tinha mais potencial em inteligência musical que o normal dos demais músicos e que esse talento era determinado geneticamente e aperfeiçoado pela dedicação de seu pai. Um indivíduo bem dotado em alguma das suas inteligências poderá fracassar se não tiver oportunidade de aprendizagem, motivação, bons professores. Entendo também que, pela minha experiência de 60 anos de magistério ininterrupto na FAU USP, do mesmo tipo de ensino ministrado a alunos variados não irá surgir uma idêntica qualidade de aprendizado dentre eles.
Tudo isso que acabei de falar se destina a explicar porque nas turmas que se formam anualmente nas escolas de arquitetura muito poucos saem merecendo o título de arquiteto, no sentido verdadeiro da palavra, portando no repertório de suas inteligências acuidade indiscutível na organização de espaços programados aonde surgiram questões estruturais, exigências das funções previstas e, antes de tudo, beleza. Isso é uma fatalidade; aos demais diplomados cabem ocupações secundárias, independentes da criação artística. Aliás, sou francamente a favor dos testes vocacionais; por desconhecê-los muitos jovens seguem em sua vida caminhos errados.
O que a direção da nova escola de arquitetura, em matéria de ensino, ofereceu aos primeiros calouros ? Ela teve, de início, que contratar novos professores destinados a explicar as disciplinas recomendadas pela legislação referente à criação dos primeiros estabelecimentos de ensino dedicados exclusivamente à arquitetura, que até então figurava como “especialização” da engenharia civil. Coube ao arquiteto Christiano Stockler das Neves orientar a “caça” de novos mestres. Evidentemente profissionais sem experiência didática e foram muito poucos aqueles que se interessaram dentre os considerados de “notório saber”.
Elisiário da Cunha Bahiana foi um deles. Ele era arquiteto da Companhia Construtora Nacional e havia recentemente projetado o Viaduto do Chá e os salões subterrâneos ao longo da passagem ligando a Praça do Patriarca ao Anhangabaú. Era pessoa do maior interesse, carioca vindo da Escola Nacional de Belas Artes, e ficou responsável pela disciplina relativa à higiene da habitação e, inclusive, da ventilação natural. Era devoto do estilo Art Déco, modalidade tolerada por Christiano que, por sinal, chegou a usá-lo no Rio, como veremos logo. Bahiana era o único professor que conversava sobre o modernismo com os alunos, sempre com o cigarro aceso pendurado no canto da boca.
Francisco Kozuta era de um didatismo excelente com sua geometria descritiva aplicada à “teoria das sombras”. Ficou meu amigo pelo resto da vida. Rui Martins Ferreira, que fora meu professor de desenho artístico no Ginásio do Estado, ensinava História da Arte na faculdade. Péssimo professor, enquanto bom amigo. Suas monótonas aulas não levavam ninguém a assisti-las. Ensinava história da arte em preto e branco carregando grossos volumes encadernados. Falando baixinho, nunca reclamou da pequena presença de alunos às suas aulas, que eram de frequência livre. Inúmeras vezes fui o único aluno presente às suas preleções. Não vou continuar falando de outros professores. Não se preocupem, não vou ficar aqui arrolando professores, cujos nomes até esqueci.
As aulas teóricas eram dadas à volta das pranchetas individuais devido ao número exíguo de alunos. Não havia projeções durante as explanações. Apenas Kozuta é que usava o quadro negro situado no fim do salão explicando as suas geometrias. Somente Pedro Corona, o pintor, dava suas seções de cópias do natural em um puxado, onde expunha modelos de gesso ou objetos da vida cotidiana para serem copiados pelos alunos. Foi um bom professor; com ele aprendi a indicar claros e escuros, isto é, iluminação do ambiente incidindo na peça a ser copiada fazendo traços fortes e marcantes das partes sombreadas e traços finos quase pagados dos pormenores iluminados. Enfim, nada de extraordinário. No entanto, aprendi satisfatoriamente desenho arquitetônico; não só plantas, cortes e fachadas, mas também, detalhes técnicos, desde uma escada balanceada até curvas de visibilidade em platéias de cinemas, teatros etc. Nossas pranchetas estavam permanentemente cobertas por folhas rubricadas pelo Christiano ou por seu assistente. Assim se passaram cinco anos. Mais tarde, em 1954, quando fui lecionar na FAU USP, esse aprendizado me foi de grande proveito para ensinar desde detalhes de execução até perspectivas aquareladas.
Christiano Stockler das Neves era filho do engenheiro agrônomo baiano Samuel das Neves, que aqui em São Paulo, no início do século 20, participou ativamente da reforma do Vale do Anhangabaú, até então chácara da sogra do conde de Prates. Ali projetou, na contígua rua Líbero Badaró, os edifícios do referido conde, que deram ao local o “ar parisiense” imaginado por Bouvard, o autor do plano geral do traçado urbano do centro histórico. Além disso, dois parques: o do Anhangabaú, fronteiro à lateral do Teatro Municipal; e, o outro, o D. Pedro II, na alagadiça várzea do Carmo. Nascido em 1889, Christiano já tinha então no sangue a herança da inteligência arquitetônica. Com 18 anos, em 1907, matriculou-se na Politécnica de São Paulo, onde estudou por dois anos. Depois desse tempo, transferiu-se para o Instituto de Belas Artes da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, quando diplomou-se em arquitetura em 1911. Assim, definiu sua profissão em quatro anos. Depois de viajar pela Europa para ilustrar-se, em 1912, integra-se ao escritório do pai. Em 1915, participou da instalação do curso de arquitetura, aqui na Escola de Engenharia mackenzista. E em 1947, da nossa faculdade, onde se aposentou em 1957. Faleceu em 1982.
Christiano da Neves era figura central e nos víamos diariamente no grande salão. É que as instalações da nossa faculdade eram extremamente precárias. Todos os alunos – não só os 16 calouros recém-chegados – mas também, aqueles ainda dependentes da Escola de Engenharia repartiam o espaço conosco. Eram cerca de meia dúzia e, na verdade, dentre eles sobressaíam apenas Salvador Cândia e Plínio Croce. Este último era realmente bem dotado e também diariamente discutia com Christiano. Ele, ferrenho seguidor de Mies van der Rohe, e Christiano, obstinado adepto do ecletismo historicista francês. É claro que legalmente o modernismo arquitetônico não poderia ser banido do elenco dos estilos e Plínio pôde todo o tempo enfrentar a “fera irredutível” durante a feitura do seu projeto final de um grande edifício de escritórios à moda novaiorquina. Essa animosidade verbal, na verdade, nos era muito proveitosa ao ser ouvida até nos fundos do grande atelier comunitário que, acredito, talvez não mais exista. Era uma construção térrea vizinha ao edifício de dormitórios dos jovens internos em tempos antigos.
Christiano das Neves, o altamente polêmico amante da arquitetura clássica, sempre nos escondeu já ter feito o projeto do Ministério da Guerra, no Rio, no estilo Art Déco. Incumbência dada pelo general Dutra, o ministro de Getúlio Vargas, nos dias do golpe do Estado Novo, em 1937. Na verdade, ele aglutinou construções já existentes, reunindo-as numa monumental edificação. Nesse mesmo estilo, fez dependências nos fundos do Hospital das Clínicas, aqui em São Paulo. E só. Era, realmente, um profissional competente, apenas era admirador de coisas do passado, mais por opção política, pois, no seu entender, a “arquitetura moderna era sem pátria, judia e bolchevique”, que haveria de ser combatida para todo o sempre. Dentre aquelas inteligências arroladas pelo professor Howard Gardner bastante desenvolvida lhe foi atribuída geneticamente aquela voltada à estética de povos há muito idos. Se a estética estava sempre a lhe preocupar em suas polêmicas, lhe faltava a “inteligência interpessoal”, aquela relativa à comunicação, a dos jornalistas, em geral, dos publicitários, radialistas, missionários e professores. Daí, ter sido no magistério um homem em permanente dificuldade de comunicação.
Relembrando esses fatos do meu passado acadêmico percebi como sucessivas e corretas administrações possibilitaram que a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo tomasse seu rumo definitivo. Parabéns pelos 70 anos da nossa inesquecível escola.
notas
NE – Palestra proferida por Carlos Alberto Cerqueira Lemos no dia 10 de maio de 2017, às 18h30, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, no escopo das festividades dos 100 anos da escola de arquitetura e 70 anos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Participaram do evento como debatedores a professora Cecília Rodrigues dos Santos e o aluno Haniel Israel, com mediação de Nadia Somekh.
1
Angélica Benatti Alvim é a atual diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
sobre o autor
Carlos Alberto Cerqueira Lemos é formado em arquitetura pela FAU Mackenzie, atualmente é professor titular de pós-graduação no departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Desenvolveu atividades ligadas ao projeto de edifícios e de urbanizações, à docência e à pesquisa histórica. É autor de diversos livros, tais como: Cozinhas etc. (Perspectiva, 1976); A casa paulista (Edusp, 1999).