A importância de engenheiros-arquitetos e construtores (como de resto todos os profissionais da construção civil) de origem italiana no Brasil do século 20 é tema de importantes estudos de nossa história da arquitetura, que enfatizam essa presença no crescimento urbano financiado pela expansão cafeeira e origem da indústria no país, notadamente em São Paulo (1). Porém, sabemos, por notícias ainda esparsas, de profissionais italianos da construção que chegaram ao Brasil desde a segunda metade do século 19, e que foram atuantes no Rio de Janeiro e na província de São Paulo. Esses personagens ligam-se à imperatriz Teresa Cristina, direta ou indiretamente; podemos afirmar, para um início de investigações, que a imperatriz napolitana representou um primeiro incentivo à chegada desses homens, e um primeiro influxo às suas ambições e realizações (2).
Pouco se sabe destes nomes, no momento – as investigações esbarram na crônica falta de memória histórica de nosso país, mas também pela crítica, feita pelo Modernismo, às contribuições desses arquitetos e construtores – identificadas como o “ecletismo” que muitos quiseram combater, desde a segunda década do século 20 (3). Sob a bandeira das considerações estilísticas, muitas vezes se esconderam nomes e trajetórias. Neste artigo, busca-se apresentar duas destas figuras, numa tentativa de iniciar e fomentar investigações mais aprofundadas sobre engenheiros-arquitetos italianos no Brasil, no Segundo Reinado.
É o caso de Cristoforo Bonini (Brescia,? – Milão, ?), de quem se conhece pouco – mas de decisiva atuação. As informações remetem a três importantes realizações: a finalização do Palácio Imperial de Verão, em Petrópolis, atual sede do Museu Imperial; a construção de túneis na ferrovia e o projeto e realização das fachadas da nova Igreja Matriz de Campinas, atual Catedral Metropolitana de Nossa Senhora da Conceição.
O jornal Correio Paulistano de 11 de outubro de 1876 traz, na seção “Noticiário Geral”, citação da “Gazeta” de Campinas sobre o lançamento da primeira pedra do alicerce do frontispício da Matriz Nova de Campinas. Depois do benzimento da pedra pelo padre Cypriano de Oliveira, conta o jornal que o engenheiro Bonini recebeu seus trabalhadores e pessoas da cidade para um “delicado e profuso copo d’água”, expressão usada na época para designar pequenas recepções onde eram servidos lanches, chá, café e doces (4).
Na documentação do Museu de Arte Sacra da Arquidiocese de Campinas, a atuação de Bonini aparece em relatórios, recibos, plantas baixas e outros escritos. Bonini se faz reconhecer pela caligrafia miúda e pela precisão de seus registros. Um dos primeiros documentos assinados por ele é um “Relatório relativo à demolição dos antigos alicerces do frontispício pelo engenheiro Cristóvão Bonini”, de 16 de outubro de 1876 (5). Bonini, em português corrente (inclusive com seu prenome aportuguesado), dá conta da primeira tarefa de sua equipe no canteiro – a destruição dos alicerces que haviam sido construídos anteriormente para as fachadas do templo.
Existe, porém, um curioso ocultamento da memória de Bonini como o autor do projeto e chefe do canteiro das fachadas da Matriz Nova de Campinas. Numa obra pioneira dedicada à história da cidade, Geraldo Sesso Júnior escreve: “Meses depois foi feito um novo contrato com um empreiteiro de nome Bonini, que também não ficou muito tempo ali, tendo um sério atrito com o Visconde de Indaiatuba; este último exigiu a sua imediata despedida, sendo então nomeado o paulistano Dr. Francisco Ramos de Azevedo, filho de pais campineiros, que tomou posse a 8 de setembro de 1880. Homem de visão extraordinária, Ramos de Azevedo organizou um novo método de trabalho, que decorreu às mil maravilhas e assim, a 13 de julho de 1883, foi organizada uma comissão para os festejos da inauguração que se daria, impreterivelmente, a 8 de dezembro daquele ano, por ser o dia de N. Sra. da Natividade” (6).
O Museu Imperial de Petrópolis guarda uma carta, escrita pela esposa de Cristoforo Bonini, e endereçada a “amigos no Brasil”. Na missiva, a esposa do arquiteto faz menção ao delicado estado de saúde do esposo, e sua mágoa com incidentes ocorridos no Brasil. De fato, a saída de Bonini do canteiro da Matriz Nova de Campinas foi bastante tumultuada. A “Monografia Histórica” do templo dá notícia de um grave desentendimento do arquiteto com o Visconde de Indaiatuba, “sobre questões relativas à imigração”.
Do embate entre o Visconde de Indaiatuba e Cristoforo Bonini, restaram tensões que a demissão sumária do engenheiro-arquiteto não foi capaz de sanar. Ramos de Azevedo conta, no primeiro Relatório como responsável pelo canteiro da Matriz Nova de Campinas (7), que os trabalhadores estavam amotinados quando de sua chegada, e que com grande custo conseguira fazê-los voltar ao serviço, mediante a regularização dos pagamentos, aumentos e melhorias na alimentação servida e a promessa de que não ficariam novamente sem seus soldos. Em outros canteiros paulistas e paulistanos, os italianos entrariam novamente em choque com a mentalidade escravocrata dos grandes plantadores de café- e a alvorada do século 20 viu nascer muitas das agremiações, associações e sindicatos, ou seja, o movimento operário brasileiro e suas lutas de resistência (8).
Existe, para finalizar, a indicação de um Bonini engenheiro-chefe da Estrada de Ferro Sorocabana, em 1872 – de novo a notícia é retirada do Correio Paulistano (9). Paula Barrantes informa ser este Bonini o mesmo Cristoforo do Palácio de Verão Imperial, das ferrovias fluminenses e da Matriz Nova de Campinas (10) – porém, em textos sobre a Estrada de Ferro Sorocabana, figura um Luigi Bonini como engenheiro da empresa (11). Não se tem certeza, no presente momento, se o Bonini que aparece como engenheiro-chefe da Ferrovia fundada em 1870 por Luís Mateus Maylasky (1838-1906) é o mesmo Bonini que atuará em Campinas – Luigi Bonini pode ter sido contratado depois, e a coincidência dos sobrenomes causaria essa pequena confusão. De qualquer forma, este Luigi Bonini da Sorocabana é outro personagem que demandaria uma investigação – é o único engenheiro italiano na empreitada de Maylasky. O retrato de Luigi Bonini consta na galeria dos engenheiros-chefes da Estrada de Ferro, guardados no Museu Ferroviário de Sorocaba.
O segundo personagem escolhido para o escopo do presente trabalho é Samuele Malfatti (?-?), conhecido na historiografia artística brasileira por ter sido o pai da pintora Anita Malfatti (1889-1964), nome que dispensa maiores apresentações. O pai de Anita atuou como engenheiro-arquiteto primeiramente em Campinas – sua realização mais famosa é o projeto do edifício do Circolo Italiano campineiro, cujo início das obras aconteceu em 20 de setembro de 1884 (12), em colaboração com Ramos de Azevedo.
É na bibliografia sobre sua filha Anita que encontramos informações sobre Samuele (13). O engenheiro-arquiteto era natural de Lucca, na Toscana; foi para lá, inclusive, que levou a filha para tratamentos de saúde em 1892 (Anita teve problemas de mobilidade desde muito cedo). Teria vindo para o Brasil por conta de problemas políticos- republicano, teria sofrido perseguições de monarquistas em sua terra. No Brasil, alistou-se às fileiras do Partido Republicano Paulista, naturalizou-se brasileiro quando da queda da Monarquia e pela sigla do PRP elegeu-se deputado estadual, na Segunda Legislatura republicana da Assembleia Legislativa paulista, de 1892 a 1894.
Sobre a atividade de Samuele Malfatti como engenheiro-arquiteto, é necessário, de fato, destacar o Circolo Italiano. Ainda não foi realizada uma investigação mais aprofundada sobre o projeto e a construção deste edifício- bastante modificado ao longo dos tempos, principalmente depois de 1918, quando se tornou um hospital, devido às epidemias de febre amarela e gripe espanhola que assolaram Campinas. A ideia inicial era a edificação de uma escola, que pudesse educar os filhos da colônia itálica. Há uma hipótese de que Samuele também teria participado do projeto para a Igreja de São Benedito, situada em frente do Circolo Italiano, mas não há nenhuma indicação até agora encontrada a esse respeito.
As dificuldades de se encontrar informações sobre as trajetórias de Bonini e Malfatti apenas confirmam a necessidade urgente de investigações mais precisas destes personagens – e a ligação desses profissionais com a presença da imperatriz Teresa Cristina, os significados pungentes da chegada de italianos ao Brasil, nas vésperas da grande imigração em massa.
notas
1
Destacamos DEBENEDETTI, Emma; SALMONI, Anita. Arquitetura italiana em São Paulo. São Paulo, Perspectiva, 1981; BARDI, Pietro Maria. Contribuições dos italianos na arquitetura brasileira. Belo Horizonte, Fiat do Brasil, 1981; HOMEM, Maria Naclério. O prédio Martinelli: a ascensão do imigrante e a verticalização de São Paulo. São Paulo, Projeto, 1984.
2
Para uma apreciação do caráter e da atuação de Teresa Cristina, referenda-se o trabalho de AVELLA, Aniello Angelo. Teresa Cristina de Bourbon: uma imperatriz napolitana nos trópicos 1843-1889. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2014.
3
Sobre as possibilidades historiográficas de uma nova compreensão do Ecletismo, ver: PUPPI, Marcelo. Por uma história não moderna da arquitetura brasileira. Campinas, Pontes, 1998.
4
Hemeroteca Digital, Biblioteca Nacional.
5
“Relatório relativo à demolição dos antigos alicerces do frontispício pelo engenheiro Cristóvão Bonini”, manuscrito datado e assinado, 16 de outubro de 1876. Pasta 1876, Fundo Construção da Matriz Nova, Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Campinas – MAAS.
6
SESSO JUNIOR, Geraldo. Catástrofe na Catedral. In Retalhos da velha Campinas. Campinas, Palmeiras, 1970, p. 131-132. Sobre o projeto de Bonini para a Catedral de Campinas, ver: VILLANUEVA, Ana Rodrigues. Campinas clássica: a Catedral de Nossa Senhora da Conceição e o engendramento de uma arquitetura clássica urbana no Brasil (1807-1883). Tese de doutorado. Campinas, IFCH Unicamp, 2010.
7
Relatório do engenheiro-arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo ao Diretório da Câmara Municipal de Campinas para as Obras da Matriz Nova, setembro de 1880. Documento manuscrito. Acervo do Museu de Arte Sacra da Catedral Metropolitana de Campinas.
8
VERMEERSCH, Paula. Por uma história social da arquitetura: os trabalhadores italianos na construção civil paulista (1870-1930). Novos Rumos, v. 1, n. 53, Unesp-Marília e Instituto Astrojildo Pereira, jan./jun. 2016, p. 101-109.
9
Do acervo da Hemeroteca Digital Brasileira, Biblioteca Nacional.
10
BARRANTES, Paula. Catalogação do acervo artístico da Catedral Metropolitana de Campinas: pinturas, esculturas, talha e detalhes arquitetônicos de 1840 a 1923. Dissertação de mestrado. Campinas, IFCH Unicamp, 2014.
11
GASPAR, Antônio Francisco. Histórico do início, fundação, construção e inauguração da Estrada de Ferro Sorocabana. São Paulo, Eugenio Cupolo, 1930.
12
BALDIN, Romilda A. Cazissi. Campinas italiana – as obras e conquistas dos primeiros imigrantes italianos. Campinas, Komedi, 2012, p. 60.
13
BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti (1889-1964). Catálogo de exposição. São Paulo, MAC USP/IEB USP, 1977, p. 23; GREGGIO, Luzia Portinari. Anita Malfatti: tomei a liberdade de pintar ao meu modo. São Paulo, Magma, 2007, p. 14.
sobre a autora
Paula F. Vermeersch é professora da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp de Presidente Prudente.