“O princípio das favelas – isto é, de uma arquitetura de proliferação anárquica – [é] que deve ser melhorado e tomado como ponto de partida, e não a arquitetura funcional”.
Hundertwasser
A ideia de que toda construção deva ser precedida de projetos técnicos é relativamente recente na cultura ocidental. Somente com a consolidação da cidade industrial e de todos os problemas que se desenvolvem-se nela, as preocupações com a produção de espaços passam a fazer parte das preocupações de profissionais de projeto. Ao longo do século 20 dissemina-se o pensamento de que especialistas devem decidir sobre a configuração do ambiente urbano como um todo, supostamente garantindo padrões de eficiência e salubridade. Apenas após a primeira guerra mundial atuação do arquiteto torna-se realmente expressiva nesse contexto, renomados arquitetos assumem para si a tarefa de projetar habitações em massa (1). Entretanto, os complexos contextos socioculturais das comunidades afetadas por suas intervenções escapavam aos princípios supostamente universais do movimento moderno.
Na Europa, em 1958 é lançado por Friedensreich Hundertwasser o “Manifesto do mofo contra o racionalismo na arquitetura” (2). Nele o austríaco faz uma dura crítica ao funcionalismo e aos enormes conjuntos habitacionais propostos pelos arquitetos modernos em função da ausência de participação dos usuários no processo de configuração da forma.
A realidade brasileira
Enquanto a Europa e EUA vivenciavam um período de intenso debate após a generalização de princípios como racionalidade, funcionalidade e padronização, no Brasil, o contexto era um pouco diferente. Enquanto no final já se decretava a falência dos CIAMs, o país vivia um momento de grande otimismo com as promessas da arquitetura e do urbanismo modernos.
Porém, houve, no entanto, pelo menos três exceções que merecem ser destacadas: Cajueiro Seco, em Recife (1960-64), provavelmente a primeira “experiência participativa” no âmbito da arquitetura e do urbanismo a ser realizada no país; a pioneira urbanização da favela de Brás de Pina (1964-1971), no Rio de Janeiro, realizada por Carlos Nelson Ferreira dos Santos; e, por fim, as experiências do grupo Arquitetura Nova (realizadas entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1980), que buscaram repensar radicalmente o canteiro de obras (3). Embora significativas, nenhuma destas experiências pode aprofundar-se. A experiência de Cajueiro Seco foi encerrada logo após o golpe de 1964, enquanto os arquitetos do Grupo Arquitetura Nova conheceram a pior face do regime, tendo sido presos e torturados.
O processo participativo
“Educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem, em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais”.
Paulo Freire
Em um projeto de habitação participativo as famílias devem participar profundamente do processo de construção de suas próprias casas, é indispensável que elas acompanhem e controlem todo o processo de produção, desde a escolha do local e elaboração do projeto até a construção (4). Portanto, aqui entenderemos o projeto de habitação como um processo que deve ser encarado através do seu significado para seus usuários. Ao democratizar as decisões durante o processo de projeto e execução é possível gerar uma nova consciência cidadã. E através desta, a comunidade passa a decidir com efetivo conhecimento de causa. Surge a partir desse processo condições para formação e aprimoramento de um novo tipo de cidadão: um cidadão ativo, participante, crítico.
Segundo Caroline Moser, a participação da comunidade na gestão dos projetos caracteriza o desenvolvimento da comunidade e o exercício do poder (5). A participação do grupo envolvido no processo de produção autogerida da habitação é uma oportunidade de oferecer a eles opções de escolhas, ampliar o repertório arquitetônico e urbanístico, mas, principalmente, uma maneira de fazer com que compreendam seus direitos como cidadãos e como reivindicá-los.
Um novo tipo de arquiteto
Tornar a arquitetura acessível é um processo longo e delicado. É necessária a conscientização do papel social da arquitetura, que começa dentro das escolas. Nas escolas de arquitetura e urbanismo, por sua vez, em vários locais do país professores e estudantes tem se empenhado de forma pioneira em grupos chamados Escritórios Modelos de Arquitetura e Urbanismo – EMAU, é um projeto de Extensão Universitária unido à pesquisa e ao processo de graduação. Esse escritório surge da discussão a respeito da vivência e das práticas dos estudantes de Arquitetura durante a graduação, com a finalidade não só de completar a educação universitária, mas também para afirmar um compromisso com a realidade social da comunidade onde a universidade está inserida.
Historicamente, o arquiteto e urbanista brasileiro não tem comprometimento com a realidade concreta, mas apenas com uma pequena parcela dela, a realidade burguesa. Essa escolha reafirma e reproduz desigualdades e privilégios (6). Porém, o problema não se encontra na troca de um tipo arquiteto e urbanista por outro, que continuaria reproduzindo formas de controle sobre a construção dos espaços, mas sim de mudar sua atuação, seu papel, esse novo tipo de arquiteto e urbanista promoveria formas efetivas de participação popular, garantindo a autonomia de comunidades envolvidas no processo (7). Assim, a opção pelo projeto participativo é uma resposta possível aos problemas políticos e sociais que envolvem a arquitetura e o urbanismo.
notas
1
KAAP, Silke. Moradia e contradições do projeto moderno. Interpretar Arquitetura, Belo Horizonte, v. 6, n. 8, 2005.
2
HUNDERTWASSER, Friedensreich. Manifesto do mofo contra o racionalismo em arquitetura. Tradução Flávio Coddou. Óculum, Campinas, n. 5/6, jan./dez. 1994, p. 88-89.
3
VILAÇA, Ícaro. Arquitetura e participação: experiências críticas ou alternativas pioneiras. São Paulo, Escola da Cidade, 28 set. 2016 <www.ct-escoladacidade.org/contracondutas/editorias/trabalho-e-arquitetura/arquitetura-e-participacao-experiencias-criticas-ou-alternativas-pioneiras>.
4
LAGO, Luciana Corrêa do (org.). Autogestão habitacional no Brasil: utopias e contradições. Rio de Janeiro, Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2012.
5
MOSER, Caroline. Community Participation in Urban Projects in the Third World. Progress and Planning, v. 3, n.2, 1989, p. 81-85.
6
ARANTES, Otília Beatriz Fiori; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Coleção Zero à esquerda, Petrópolis, Vozes, 2000. Ver também: MARICATO, Ermínia (org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. Volume 1, Coleção Urbanismo, 2ª edição. São Paulo, Biblioteca alfa e Ômega Ciências Sociais, 1982.
7
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga. A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, Casa da palavra, 2001.
sobre o autor
Marcos Antonio Francelino da Silva é graduando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Alagoas. Pesquisador pela CNPQ no Projeto “Avaliação da produção habitacional de interesse social em Alagoas: aspectos metodológicos e aproximações entre o programa minha casa minha vida e o PAC urbanização de assentamentos precários” até 2014. Diretor de Relações Externas na Federação dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, desde 2015.