“Cracolandias”, Cracudos, Viciados, Zumbis. Corpos degradados, cenários urbanos depredados. A imagem do crack no senso comum é cheia de estigmas alimentados pela mídia e por programas governamentais de higienização. Alia-se a isso o fato de que o uso do crack, em algumas grandes cidades, se desenvolveu de forma mais visível: em ambientes centrais e desprotegidos e não no contexto restrito às favelas. Essa visibilidade despertou na sociedade em geral uma perplexidade que antes não existia e que, aliada à reprodução pela mídia de informações carregadas de preconceito, marginalizou ainda mais esses indivíduos. Mantém-se a ideologia do usuário de drogas como delinquente ou como um doente. Em ambos os casos, as políticas se direcionam para a punição, ora através do aprisionamento, ora através da internação hospitalar. Ocorre que, além de não ajudar a diminuir os índices de consumo, o custo dessa política pública de ilegalidade de determinadas substâncias, bem como de criminalização dos seus consumidores, tem custo social altíssimo, já que dá ensejo ao genocídio brasileiro de jovens pobres e negros imersos na violência retro alimentadora desse sistema.
No dia 21 de maio foi amplamente divulgada pela imprensa a intervenção policial na chamada Cracolândia, local onde, desde o início dos anos 90, reúnem-se usuários de drogas. Com a ajuda do Governador, o Prefeito da capital paulista utilizou-se da Polícia Militar e da Polícia Civil para realizar uma tentativa de “higienização” da área. Evidentemente que a operação policial não cumpriu a sua finalidade, pois as pessoas enxotadas pela irresponsabilidade de um gestor público insensível, foram se alojar nas proximidades da Cracolândia, ocupando outro espaço urbano. A operação serviu também de palco para um fim espetaculoso do Braços Abertos, programa que visava a redução de danos dos usuários e oferecia moradia em hotéis na região, e a sua substituição pelo projeto Redenção, que prevê a internação compulsória em alguns casos.
A (des)criminalizão
Não é só o usuário de maconha, mas o de todas as outras drogas, sobretudo o usuário de crack que precisa, urgentemente da sua descriminalização.
Se um dos passos fundamentais no abandono de uma relação problemática com qualquer droga é o fortalecimento da autonomia individual, não é difícil concluir que uma decisão judicial e um programa de guerra as drogas, que descriminaliza, além de manter os usuários de drogas inseridos nos espaços de vulnerabilidade e violência, os afasta do sistema de saúde e intensifica a visão preconceituosa que, contra eles, já vigora.
Quem consome drogas não afeta a saúde de outrem, mas a sua própria (quando afeta…), dessa forma em um Estado Democrático de Direito não é possível punir uma conduta que não atinja terceiros (1), razão pela qual, por exemplo, não se pune a autolesão ou a tentativa de suicídio, estando tais condutas inseridas dentro da esfera de privacidade do sujeito, sendo ilegítima a intervenção do Direito. Portanto, o proibicionismo leva os usuários a uma situação de marginalização e de estigmatização, inserindo-os no sistema penitenciário que, como é notório, longe de ressocializar, criminaliza e violenta ainda mais. É um verdadeiro círculo vicioso. A questão das drogas não pode ser resolvida pelo sistema de Justiça Criminal: Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário. Outros atores devem ser chamados: assistentes sociais, pedagogos, médicos, psicólogos, família, igrejas, escolas etc.
Violência
De todas as formas de associação entre drogas e violência, a única certa é a violência sistêmica: se não há como afirmar que, necessariamente, o uso de drogas leve ao crime, é certo que a proibição cria uma nova e imensa categoria de criminosos. A violência sistêmica nada mais é do que o conjunto de manifestações violentas relacionadas com o âmbito do ilícito criado por uma política de proibição absoluta de certas substâncias. No exato momento em que se proíbe alguma droga, todos os indivíduos direta ou indiretamente relacionados a ela são alçados à condição de criminosos. Ao contrário do cuidado e da atenção propagados pela política criminal, resta para os usuários de crack apenas a violência, sistêmica e legal.
Política do medo
Os novecentos policiais fortemente armados, os veículos blindados, helicópteros, os atiradores de elite e os cães, as dezenas de pessoas que foram presas por tráfico de drogas, além da apreensão de armas e drogas, a interdição, o bloqueio e a demolição de todos os hotéis e pensões, e a instalação de um amplo sistema de monitoramento na região são partes de um projeto de urbanismo militar que tem como objetivo garantir a privatização daquele local.
“A mudança paradigmática que torna os espaços comuns e privados das cidades, bem como sua infraestrutura — e suas populações civis —, fonte de alvos e ameaças é fundamental para o novo urbanismo militar. Isso se manifesta no uso da guerra como metáfora dominante para descrever a condição constante e irrestrita das sociedades urbanas — e guerra contra as drogas, o crime, o terror, contra a própria insegurança” (2).
Ao nos acostumarmos com o léxico da “guerra às drogas” e da “pacificação”, cada vez mais, a linguagem da guerra que permeia a política metropolitana ganha força. Nesse cenário, manifestantes são passíveis de serem enquadrados como terroristas, o medo de elementos antissociais é constantemente ativado por autoridades para pacificar protestos e novos mecanismos jurídicos são mobilizados para suspender a lei civil. Quando a gestão da polis passa a ser pensada em termos militares, não há mais lugar para a democracia (3).
notas
1
Art. 3º., I, da Constituição Federal estabelece como objetivo da República Federativa do Brasil estabelecer uma sociedade livre, justa e solidária, onde deve ser respeitada a intimidade e a vida privada dos cidadãos (art. 5º., X)
2
GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo, Boitempo, 2016, p. 4.
3
Idem, ibidem.
sobre o autor
Marcos Antonio Francelino da Silva é graduando em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal de Alagoas. Pesquisador pela CNPQ no Projeto “Avaliação da produção habitacional de interesse social em Alagoas: aspectos metodológicos e aproximações entre o programa minha casa minha vida e o PAC urbanização de assentamentos precários” até 2014. Diretor de Relações Externas na Federação dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, desde 2015.