Ainda abalado com a morte do meu ex-professor e referência política e intelectual não apenas dos tempos de juventude. Infelizmente, não posso dizer ter sido seu amigo, mas acompanhei com alguma proximidade sua trajetória. Tratava-o com certa reverência pelo respeito que por ele nutria. Algumas lembranças se encadeiam na minha memória de maneira quase cronológica.
Primeiro, na sala de aula, na graduação. Acendia um enorme charuto e começava a sua palestra. Não tinha anotações. Simplesmente começava a falar. Por vezes, dava umas baforadas no charuto para que o mesmo não apagasse. Neste momento, o ritmo da sua fala esmorecia, para depois seguir adiante. Não perdia as suas aulas por nada. Poucos sabem que Marco Aurélio Garcia não tinha mestrado e nem doutorado. Achava perda de tempo fazer tese. Pro tipo de pensamento que ele produzia, talvez fosse mesmo.
Depois o vejo na Secretaria de Relações Internacionais do PT e na Prefeitura de São Paulo, como Secretário de Cultura. Lembro-me especialmente de um almoço em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial, quando ele e o nosso amigo em comum, Jorge Mattoso, me contaram em detalhes as suas peripécias junto ao MIR chileno. Marco Aurélio lembrava-se rindo e eu "via" a cena: ele no aeroporto de Paris, trocando de passaporte falso, e fazendo a barba no banheiro, trazendo para o Chile os microfilmes confidenciais no fundo falso da mala.
Durante o governo, encontrei com ele várias vezes, mas sempre de maneira muita rápida. Certa vez, num evento no México, em 2005, lhe perguntei: “você está escrevendo o livro?” Ele me respondeu assustando: “que livro?” Então eu lhe disse como se fosse agora eu o professor: “Marco Aurélio, você tem a noção do que significa a posição que você ocupa no governo. Você precisa, e logo, se não o fez ainda, escrever as suas anotações sobre as suas viagens com o Lula e sobre os bastidores da política externa. Você está vivendo e fazendo história”. Ele se foi, puxado pelo embaixador, que o ciceroneava.
Marco Aurélio era um exímio orador. Mas o seu forte não eram as palavras de efeito para levantar a multidão. Era uma espécie de scholar orgânico da classe trabalhadora e dos movimentos sociais. Suas análises eram meticulosas. Começavam com uma descrição do quadro mais amplo e depois apontavam os cenários possíveis. Isso tanto na política externa como na interna. Trazia um olhar crítico à esquerda, ao mesmo tempo que buscava orientar suas ações, num sentido mais pragmático, mas sem atenuar o horizonte utópico. É uma pena que tenha escrito tão pouco. O seu pensamento era essencialmente político, desbravando oportunidades a serem construídas nos cenários sempre complexos e cambiantes da política latino-americana. Tornou-se um exímio articulador e negociador político, atuando sempre nos bastidores. Vai dar muitas teses e livros, mas não será fácil a vida dos historiadores de Marco Aurélio Garcia. Apesar de ser um causeur nato, ele não deixava rastros.
A última vez que o vi foi entre o primeiro turno e o segundo turno das eleições presidenciais passadas. Ele disse assim: "Nós (referindo-se ao PT) ainda não conseguimos construir uma narrativa sobre o significado da nossa passagem pelo governo". Referia-se à necessidade de reflexão crítica sobre as transformações processadas no país e no próprio PT. Era o quadro mais capaz de liderar esta reflexão dentro do PT. Eu perdi um mestre e uma referência em vários sentidos, outros perderam um amigo sempre gentil e brincalhão, o PT perde o seu principal pensador. O Brasil perde uma parte importante de sua história que precisa ser contada.
sobre o autor
Alexandre Freitas Barbosa é graduado em Ciências Econômicas (Unicamp, 1991), mestre em História Econômica (USP, 1997) e doutor em Economia Aplicada (Unicamp, 2003) e pós-doutor (Cebrap, 2007-2009). É professor de História Econômica e Economia Brasileira no IEB/USP.