Você acorda mais cedo, mesmo tendo dormido pouco, mesmo estando frio, mesmo nunca sendo ninguém antes das oito (nem o padeiro).
Você passa o café, arruma uma mesa simples mas bonita, com o pão simples mas gostoso e ainda fresco que comprou ontem à noite.
Você tenta sem sucesso não fazer muito barulho, você apronta tudo e espera o despertador tocar. Você entra no quarto com duas xícaras cheias e quentes. A sua, você bebe. A outra, você entrega junto com um pacote de afagos, beijinhos, bons dias e tudo isso.
Ele abre os olhos, sorri, espreguiça, me puxa pra junto, eu deixo. Fico ali uns minutos, depois me reergo, tomo outra golada. Ele se encoraja, se ajeita, traga com vontade e ... faz a cara mais indecifrável que já vi na minha vida...
Arregala os olhos, estica a bochecha, aponta para o líquido: agora eu entendo, é uma súplica! Mas por que, diabos?
Ele se desvencilha (eu ainda ali, em cima), corre, cospe. Antes me dá a xícara, eu provo. Forte, quente, frio, morno, fraco, doce? Não!
Que foi isso, maquinista? Café com sal café com sal café com sal café com sal café com sal café com sal...
E no fundo do túnel a luz que vinha era um trem.
Dedico esta crônica do sal anunciado a todos aqueles que marcaram, marcam ou marcarão reuniões matinais com quem definitivamente não é ninguém antes das oito; mais ninguém ainda que – e principalmente – o padeiro. Talvez apenas uma sádica. Ou homicida. Triplamente desqualificada.
[Com referências a Rubem Braga, Manuel Bandeira e Gabriel Garcia Márquez]
sobre autora
Ana Paula Bruno, escorpiana de 8 de novembro de 1976, graduada e doutora em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo. Servidora pública, trabalhou na Prefeitura de São Paulo até 2009, quando mudou para Brasília para trabalhar no Ministério das Cidades, onde está até hoje. É filha de Iansã, apaixonada por pessoas, por cidades e pela língua portuguesa.