No julgamento no TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), marcado para o próximo dia 24 de janeiro, a decisão que condenou Lula deve ser mantida ou reformada? O ex-presidente deve ser condenado, e impedido de disputar a próxima eleição, ou absolvido? Existem duas torcidas, cada uma defende um resultado diferente. Tem até juiz que, mesmo sem ter lido a sentença, a declara irrepreensível. Vai entender. Nas democracias, porém, o que pensam os torcedores não importa. Em uma democracia, o ex-presidente não deveria ser absolvido, muito menos condenado.
Mas não estamos mais em uma democracia. A Constituição que a sustentava legalmente foi aniquilada. Hoje em dia, ninguém mais consegue citar a Constituição para fazer valer um direito. O que se chama “Estado de Exceção” tomou conta. Quem pode mais faz o que quiser – no caso, os juízes, desembargadores, ministros do STF e todo um sistema de justiça cada vez mais patético aos olhos da população perplexa. Bom lembrar que ninguém – nem o mais meigo existencialista – faz nada sem interesse. Então, essa galera toda está trabalhando muito pelo que lhe interessa: mais e mais poder.
Não posso seguir com esse argumento sem lembrar que antes, quando nada do que está acontecendo era imaginável, pensávamos na corrupção como o grande horror. Hoje, muitos já percebem que o “foco” que se colocou nela só serviu para desviar nosso raciocínio. A corrupção não acabou e ainda corromperam a Constituição. Ela, que servia de garantia a um pacto básico, se foi, e isso é estratégico para os interesses em jogo. Isso se chama “pós-democracia”.
Se fosse para respeitar o que determina a Constituição brasileira, a sentença que condenou Lula deveria ser anulada. Vários juristas já apontaram diversas nulidades e outras atipicidades na sentença que será apreciada pelo TRF4 (até livros já foram escritos só para descrever os vícios processuais e inconsistências da sentença condenatória), mas há uma que salta aos olhos em razão de sua simplicidade.
Não se trata do chamado “vício de competência”, que muitos vislumbram na decisão. No Direito há uma prévia determinação legal que define qual juiz dentre os vários existentes deve julgar uma causa determinada. É um assunto bem complexo e eu, que não sou da área, não vou me aventurar a explicar. Mas li diversos juristas apontando que as tais regras de competência foram violadas na sentença que vem a julgamento no dia 24 de janeiro.
Não me refiro aos usos e abusos das delações premiadas, cujo conteúdo não guarda qualquer relação necessária com o valor “verdade”. Esse já é um problema jurídico e filosófico ao mesmo tempo. Parece que os novos juristas incensados pela televisão não se preocupam muito com a questão da ética. Também não preciso mencionar as falácias contidas na sentença, que já foram recentemente denunciadas por um professor de lógica. Mas vamos adiante porque o problema que devemos apontar merece muita atenção.
A questão a que me refiro é muito mais simples. Não há necessidade de maiores conhecimentos em direito para respondê-la. Qualquer pessoa com bom senso saberia a resposta para a questão que a sentença do exótico e midiático (ou midiático e messiânico) juiz de Curitiba coloca: pode alguém, apontado como autor de um crime contra um réu, julgá-lo?
Vejam bem. Sobre o fato, a conduta que permitiu o vazamento de uma conversa telefônica entre o ex-presidente Lula e a então presidenta Dilma, não há controvérsia. O vazamento ocorreu. O juiz de Curitiba o admite e afirma que agiu com a melhor das intenções (as mesmas boas intenções que enchem o inferno).
Em juridiquês, afirma-se que a tipicidade da conduta do juiz é evidente, ou seja, que a ação praticada por ele está prevista na lei penal como crime. Um fato típico, dizem os penalistas, é tendencialmente ilícito, ou seja, contrário ao Direito. Ok, embora inexista causa manifesta que permita, desde logo, afirmar que não ocorreu um crime, vamos dar o benefício da dúvida ao juiz de Curitiba, afinal, a presunção de inocência, tão desprestigiada por alguns juízes, ainda está na Constituição da República que deveríamos voltar a respeitar.
Nós vamos usar a presunção de inocência até mesmo para respeitar os direitos daqueles que não gostam dela. Assim, vamos admitir que na conduta do famoso juiz exótico e midiático poderia estar presente uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade. Vejam que eu estou preocupada em defender radicalmente sua potencial inocência. De qualquer modo, a pessoa que pratica uma conduta típica que gera lesão a um direito do réu, mesmo que ela não seja criminosa, ao menos nas democracias, não pode julgá-lo.
No julgamento de Lula, porém, tudo parece ser diferente. Por que com Lula é diferente? As regras do jogo democrático, aparentemente, podem ser afastadas sem maiores consequências no seu caso. É como se tivesse sido criado um direito especial para os indesejáveis como Lula, um Estado de Exceção inteiro funcionando na sua direção. Um desejo de puni-lo a qualquer custo. Ao custo da Constituição, da democracia e da inteligência das pessoas, do povo, sobretudo.
A impressão que muitos devem estar tendo nesse momento é de que uma certeza delirante tomou conta dos julgadores, de grande parte da mídia e da parcela da população que cultiva um ódio antipetista. Isso ajuda a afastar os direitos e garantias fundamentais de Lula, e as mais básicas conquistas civilizatórias tais como a imparcialidade, o devido processo legal, as regras de competência, a vedação da prova ilícita e a presunção de inocência. Isso tudo é muito sério para a vida. Fica evidente que cada um de nós pode ser o Lula de amanhã. Acha que não? Você se considera imune ao poder e às perversões dos seus agentes? Lembre-se de Robespierre e de Simão Bacamarte. Noutra linha, analise o caso da jovem palestina Ahed Tamimi, encarcerada aos 17 anos por exigir respeito à sua dignidade, caso precise de ajuda para pensar.
A hipótese formulada pela acusação, a qual o juiz aderiu, tornou-se mais importante do que os fatos demonstrados pelas partes. As convicções pessoais dos envolvidos no processo tornaram-se critérios de verdade. Mas na democracia não pode ser assim. Amando ou odiando Lula, amando ou odiando o PT, deveríamos respeitar seus direitos, que são os de todos nós.
nota
Publicação original do artigo: TIBURI, Márcia. Como seria o julgamento de Lula se estivéssemos em uma democracia. Cult, São Paulo, 9 jan. 2018 <https://revistacult.uol.com.br/home/julgamento-lula-trf4-democracia>. Republicado na revista Drops do portal Vitruvius com autorização da autora.
sobre a autora
Marcia Tiburi é escritora e filósofa.
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