Em 2017 a APCA premiou Bia Lessa e Paulo Mendes da Rocha em diferentes categorias. Bia foi eleita a melhor diretora de teatro pela montagem do clássico literário de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas e o arquiteto recebeu o prêmio pela urbanidade do recém-inaugurado Sesc 24 de Maio.
O que talvez poucos saibam é que a peça que premiou a Bia Lessa teve o cenário criado por Paulo Mendes da Rocha (1). E mais, foi a diretora que em 1990 introduziu o arquiteto no mundo da cenografia e com ele estabeleceu relevante produção por cerca de quase uma década.
Ao todo Paulo Mendes da Rocha projetou quatro cenários para Bia Lessa: Sour Angélica, que foi encenado no Teatro Municipal de São Paulo em 1990 e 1992 e no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1995; O homem sem qualidades e Futebol, ambos em 1994 e mais de vinte anos depois, em 2017, uniram-se novamente por Grande sertão: veredas.
Os caminhos de Guimarães Rosa, Paulo Mendes da Rocha e Bia Lessa já haviam se cruzado em 2006, quando a diretora foi a responsável pela museologia da exposição comemorativa do cinquentenário da primeira edição do romance de Rosa, para inauguração do Museu da Língua Portuguesa.
Para quem se recorda da história, no livro o jagunço Riobaldo conta as pelejas, medos e amores de sua vida a um desconhecido que não exerce nenhum papel na trama que não o de ouvinte. E apesar do livro girar em torno de suas memórias, o foco da narrativa é encantamento de Riobaldo por Diadorin, um jagunço que só se revela mulher travestida de homem no momento de sua morte.
A montagem de Grande sertão: veredas, em São Paulo, foi um enorme sucesso e já tem estreia marcada no Rio de Janeiro para 28 de janeiro de 2018. No Rio a montagem será na rotunda do Centro Cultural Banco do Brasil, com o espaço cênico adaptado às especificidades do lugar.
A versão paulistana de Grande Sertão: Veredas teve como abrigo a área de convivência da unidade do Sesc Consolação. Ali, vimos emergir uma estranha gaiola de aço de cerca de 15 metros de comprimento por 9 metros de largura e 5 metros de altura, que era a um só tempo cenário e espaço expositivo. Durante o dia era possível andar pela estrutura, além de assistir aos vídeos dos ensaios da peça.
O Sertão criado por Paulo Mendes da Rocha para Bia Lessa é uma estrutura metálica estéril – uma espécie de andaime – o piso é um tablado preto e o céu é o forro metálico do Sesc.
Bonecos de feltro estão espalhados por toda parte reiterando a ambientação ressequida. O público está inscrito dentro deste espaço, mas separado por uma segunda gaiola, onde os atores encenam por mais de duas horas a versão de Bia Lessa para o universo de Rosa.
Pode parecer contraditório mas, apesar da ideia de confinamento transmitida por esta gaiola, o que é proposto por este cenário é a destruição de fronteiras: a eliminação de limites entre o início e o fim do espetáculo. “Quando o espetáculo termina, abrimos as cortinas e a exposição continua” (2), explica Bia Lessa.
A montagem propõe ainda romper com a distinção entre artes cênicas e as artes plásticas; entre espaço cenográfico e espaço público. Ideias reforçadas pelo caráter expositivo do cenário e pelo fato dele estar instalado em uma área de livre acesso do Sesc.
Além disso, discute-se o fim da distinção de gêneros. Nenhum ator sai de cena durante todo o espetáculo e todos fazem os mais variados tipos de personagens: homens, mulheres, pássaros ou plantas. Ao falar sobre gênero, Judith Butler afirma que “o gênero não deve ser constituído por uma identidade estável” (3); pelo contrário, a questão de gênero é constituída no tempo e embora haja corpos individuais que encenam estas significações em uma configuração binária, os atributos do gênero são performativos, ou seja, são a maneira como o corpo mostra ou produz uma significação cultural.
Em outubro de 2016 Bia Lessa e Paulo Mendes da Rocha conversaram sobre o processo de criação do espetáculo com um grupo de sessenta pessoas, dentro do cenário onde a peça foi encenada. Segundo Bia Lessa,
“o conceito do confinamento é a ideia de você criar um universo próprio em que se está contando para o outro. Então eu acredito que ficaria mais clara a ideia do visitante, de que há um outro que vem de um outro universo. Como Guimarães diz, ‘o senhor é um homem circunspecto; a sua inteligência vai me ajudar’. Então, esta primeira ideia do confinamento veio do Paulo (Mendes da Rocha). [...] Aos poucos a gente foi vendo que não, que era importante que a plateia estivesse muito perto porque queríamos que aquela violência estivesse na cara de cada um, mas que tivéssemos a ideia de universos separados. Então por isso o confinamento. É separado mesmo. Por mais que seja uma separação de uma pequena gaiola que dificulte o olhar. As pessoas precisavam se abaixar para desviar das travessas e ver. [...] e isso foi rico pois a ideia de confinamento, é essa sociedade que não está dentro da sociedade e que é vista por nós de tão perto e ao mesmo tempo tão protegida. Podemos ver como expectador ou podemos entrar nela e ver. Mire veja! O Paulo uma vez me disse: a gente não pode ver vendo senão a gente enlouquece. A gente tem que ter alguma defesa” (4).
A visão de mundo da cenografia revela que o espaço necessário para o desenvolvimento de um espetáculo teatral deve estar ligado a seu tempo em cena. Segundo Pamela Howard, “pensamos no espaço em ação [...] no que precisamos para criar o espaço certo e como ele pode ser construído com forma e cor no sentido de aprimorar o ser humano e o texto” (5). Na visão de Paulo Mendes da Rocha, trata-se de uma recriação:
“Porque as coisas surgem com uma exuberância muito grande e de um modo inesperadamente novo. Uma nova interpretação. O que eu quero dizer é que o que fica como extraordinário é o que se deu: Uma obra nova. Eis um novo discurso sobre a questão de Grande sertão: veredas como o Guimarães Rosa pôs para o mundo. É uma versão, fruto de um trabalho que pode ser reproduzido quantas vezes quiser. Essa é que é a graça.
Portanto, isto que está aqui é um modo de ocupar o espaço com a perspectiva de contar aquilo que se sabe do Guimarães Rosa. Não é um percurso meticuloso do texto dele, mas a partir da totalidade da questão que ele colocou, que é a história do Brasil, de ocupação da América, do sertão, cercada de inúmeros acontecimento e fatos correlatos necessários para percorrer o território e conhecer o lugar onde está. E realizar as coisas no espaço. A história é maravilhosa, é infinitamente discursiva e tem que ser revista sempre, inclusive a luz da situação atual. Está aí a história do nosso Rio São Francisco novamente posta como questão. Estão aí as questões do masculino e feminino da humanidade. Isso é um tipo peculiar de nova edição da obra do Guimarães Rosa” (6).
O cenário possui uma linguagem carregada de questões humanas e sociais importantes, porém a contribuição mais significativa, a nosso ver, é a apreensão do mundo que é tomado por alvo e é isto que proporciona uma experimentação espacial que transcende o teatro e ampara as mais complexas questões humanas.
Em tempos estranhos Bia Lessa e Paulo Mendes da Rocha nos mostram que Grande sertão: veredas continua atual, discutindo a questão de gênero, a dificuldade do sertanejo e bandos sem lei dominando a parte central do nosso país.
E o balanço final de Paulo Mendes da Rocha:
“O que interessa é que esta peça, o Grande sertão: veredas, feita pela Bia Lessa é um fato novo na literatura, no mundo das artes, no mundo do teatro. E pode ser repetido quantas vezes se fizer necessário. É um trabalho feito. É uma nova edição muito oportuna e útil de um trabalho interessantíssimo que é a saga deste homem desamparado no sertão. Que é o que está aí até hoje” (7).
notas
1
Com colaboração da arquiteta Camila Toledo, responsável pelo desenvolvimento do projeto técnico para o cenário.
2
Bia Lessa dentro do cenário da peça, no Sesc Consolação, 18 out. 2017.
3
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p. 200.
4
Bia Lessa dentro do cenário da peça, no Sesc Consolação, 18 out. 2017.
5
HOWARD, Pamela. O que é cenografia? São Paulo, Edições Sesc São Paulo, 2015, p. 27.
6
Paulo Mendes da Rocha dentro do cenário da peça, no Sesc Consolação, 18 out. 2017.
7
Idem, ibidem.
sobre a autora
Fernanda S. Ferreira é Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie. É titular do escritório Opera Quatro Arquitetura, em sociedade com Pablo Chakur, e juntos foram vencedores do Concurso para o Teatro Municipal de Londrina e para o Edifício Sede da FATMA/FAPESC, além de terem sido premiados em outros concursos públicos nacionais.