Meu vô João Lopes Lambert, com 95 anos, morreu na semana passada. Ele viveu uma vida longa e boa. Ex-combatente, foi enviado para o nordeste durante a Segunda Guerra, ficou aquartelado em Fernando de Noronha, viu a final da Copa de 1950 no Maracanã, trabalhou na CSN, foi motorista, marceneiro, carpinteiro, dono de marcenaria, de loja de material de construção, arquiteto, pintor, escritor... Fez de tudo.
Já com mais de 90 anos foi diagnosticado com um tipo de "leucemia de gente velha", algo que até hoje eu não entendi exatamente o que é, e que acabou por descarregar o restinho de sua bateria. Assim como meu vô Elias, ele acordou, tomou café e morreu.
Nesse último ano ele sofreu um pouco com uma infecção de urina que o debilitou muito. Não fosse um plano de saúde do Exército, que só em março do ano passado ele descobriu que tinha direito por ter sido Pracinha, não teria passado dos 94. Foi um privilégio, coisa que pouquíssimos brasileiros têm: cuidados hospitalares de alto nível custeados pelo poder público.
A morte dele é muito triste pra toda minha família e pra todo mundo que conviveu com ele (acho que quanto mais tempo a pessoa vive, maior é o nosso afeto por ela), mas ela me faz pensar em muitas outras coisas: o estado da saúde pública, nas aposentadorias defasadas, no valor do salário mínimo, no crescimento da miséria e da desigualdade... Quem terá acesso a tudo isso que meu avô teve?
Apesar da tristeza, eu gostaria que o Brasil inteiro sentisse a mesma dor que todos aqui estão sentindo. É algo bom. É a dor de quem conviveu por muito tempo com a mesma pessoa. Alguém que viveu uma vida longa, com cuidados familiares, do Estado, cercado por pessoas que nunca passaram necessidade e cuja única preocupação era com o próprio bem estar.
Que esse momento de dor sirva de inspiração para a luta. Que os privilégios se transformem em lugar comum e que todos os brasileiros tenham uma vida tão boa e longa quanto a que o meu vô João teve.
Quem sabe...
Até a próxima vô. Obrigado por tudo.
nota
NE – texto originalmente publicado na página do autor no Facebook.
sobre o autor
Douglas Lambert (Cambuí, MG, 1984) é formado em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. Montador, roteirista e fotógrafo de profissão, desenvolve seu trabalho autoral a partir da investigação da fotografia em ultravioleta e, principalmente, em infravermelho.