No final do ano passado, a imprensa destacou matéria referente à ação de indenização promovida pelos artistas do grafite Chivitz e Minhau (pseudônimos) contra a Nissan do Brasil, em que foram vencedores. Na Folha de S. Paulo de 14 de novembro, a matéria se chamava “Artistas podem ser indenizados por propaganda exibindo grafite”. É que, em 2014, numa propaganda do Nissan Versa apareceu, em cena de rua, por 4 segundos, um grafite da autoria deles – com a imagem captada sem a devida autorização. Em outras palavras, teria havido o uso indevido da imagem de obra artística para promover a venda de novo modelo do veículo, como decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo (feito 1007409-55.2015.8.26.011).
Reformando a sentença, o acórdão decidiu, por maioria de votos, dar provimento ao recurso de apelação e fixar a indenização em R$ 30 mil por danos morais e R$ 5 mil por danos materiais para cada um deles. Entendeu o desembargador que “o destaque dado ao painel de autoria dos ora apelantes e a ideia de modernidade e rebeldia que deles se extrai” agregou valor ao novo produto. O voto divergente observou, contrariamente, que o trabalho dos artistas aparece por breve espaço de tempo (4 segundos numa peça publicitária de 30 segundos), “de modo a não ser possível vislumbrar o uso da imagem com fins comerciais”. A decisão não transitou em julgado.
Esta decisão, entretanto, a ser mantida, constituirá perigoso precedente a quem pretenda representar a cidade onde haverá, certamente, obras com direitos autorais protegidos. Refiro-me, especialmente, aos monumentos (por exemplo, o Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret) e às obras arquitetônicas (por exemplo, o Masp, projeto de Lina Bo Bardi). A questão que se coloca é a seguinte: pelo fato da obra estar situada em local público, sua representação fica impedida salvo mediante autorização dos criadores? Se a resposta fora positiva, isto levará à impossibilidade de representação da cidade em qualquer meio, para qualquer fim, notadamente aqueles com intenção de lucro. Imagine-se, por exemplo, a Avenida Paulista onde, além do Masp, há diversas outras edificações importantes e significativas: a arquitetura, afinal, é uma arte urbana, arte de rua, como o grafite.
De outro lado, se a resposta for negativa, isto significará a negação dos direitos autorais, que são garantidos pela Constituição Federal. Como resolver, então, o problema? Precisamos ver o que acontece em outros lugares. No mundo, há basicamente dois modelos jurídicos a respeito: o alemão e o francês. O alemão garante amplamente a “liberdade de panorama” ou, em bom português, “de vista” (Panoramafreiheit, nos EUA freedom of panorama) enquanto o francês, ao contrário, exige o respeito dos direitos intelectuais dos criadores em todos os casos.
Em data recente, matéria de um jornal espanhol alertava os viajantes que a Torre Eiffel só podia ser fotografada de dia e não de noite. Isto porque, de dia era um monumento de domínio público. Mas à noite havia outro direito autoral a ser protegido: o direito do criador do projeto de iluminação da torre, que, sem dúvida, é uma criação intelectual autônoma. Isto não tem nada de errado porque estamos em face de duas criações distintas: a de Gustave Eiffel e a do autor do projeto de luz (lighting design).
Em julho de 2015, o Parlamento Europeu discutiu o assunto e decidiu, por ampla maioria, rejeitar proposta que pretendia estabelecer que “o uso comercial de fotografias, vídeos ou outras reproduções de obras localizadas permanentemente em locais físicos públicos sempre estivessem sujeitos ao consentimento prévio do detentor do direito autoral”. Como não foi aprovada a resolução, cada legislação nacional pode adotar modelo próprio, não se uniformizando no bloco nenhum modelo.
A lei autoral brasileira foi clara em negar tal direito de consentimento prévio ao profissional seja da arquitetura seja das artes plásticas de rua. No capítulo referente às limitações dos direitos autorais, dispõe ela que “as obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais” (art. 48). Este texto gera vários problemas interpretativos em função dos dois advérbios sucessivos.
A matéria é polêmica (o que se demonstra no voto divergente) mas, em linha de princípio, deve-se entender que a representação da via, sem o destaque de nenhuma edificação, é livre e não pode sofrer nenhuma restrição. A cidade é, por definição, obra comum, múltipla, plural; mas, de outro lado, seus edifícios, individualmente considerados, podem constituir obras protegidas. Portanto, se se pretender representar apenas certa e específica edificação – por exemplo o Hotel Unique, projeto de Ruy Ohtake –, mostra-se inequívoca a incidência dos direitos autorais. São as circunstâncias do caso concreto que dirão se houve ou não representação indevida de obra protegida. Como registrado no acórdão do caso Nissan, “embora as obras produzidas pelos autores se encontrem em logradouro público, a autorização para reprodução não se presume, ainda mais quando há proveito econômico por quem as utilizou sem a prévia autorização e sem o retorno financeiro aos autores”.
sobre o autor
José Roberto Fernandes Castilho é professor de Direito Urbanístico na graduação em Arquitetura e Urbanismo da FCT/Unesp. É autor do livro O arquiteto e a lei (3ª edição, 2017).