Após três anos em reforma/restauro, hoje foi reinaugurado o edifício da Fundação Joaquim Nabuco situado no Derby, região central do Recife. A Fundaj é uma instituição criada por iniciativa de Gilberto Freyre há quase 70 anos e ligada ao Ministério da Educação. É neste edifício que se situa o Cinema da Fundação e também a galeria Vicente do Rego Monteiro, além de salas de aula e de conferência, onde, ao longo dos últimos vinte anos, uma geração inteira formou um olhar crítico em cinema e artes visuais. É uma devolução, ao Recife, de um equipamento cultural de fundamental importância aos moradores da cidade, agora ainda melhor equipado.
Como servidor da instituição, coube a mim organizar, com a colaboração de vários colegas, a exposição de reabertura da galeria, feita com o incrível acervo artístico e iconográfico da Fundaj: pinturas, fotografias, gravuras, vídeos e até mesmo cartões postais, cartes de visite e rótulos de cachaça. Dei à mostra o título de “raça, classe e distribuição de corpos”, uma tentativa de mostrar, através das obras expostas, o quase óbvio fato de que corpos (o meu, o seu e o de qualquer um) existem e se distribuem no espaço, ocupando lugares que são físicos mas também, em um mundo fundado em desigualdades, marcadores do quão diversas são as vidas e suas possibilidades. Se a alguns corpos é facultada uma existência com conforto material e segurança afetiva, a outros se destina uma vida atravessada pelo medo e pela falta. Se uns possuem poder de movimento e de mando, outros são submetidos a um regime de circulação regrada e de obediência – mas também de resistência – às ordens dadas.
Distribuição de corpos formadora de um território (o Brasil) que, transformada, ainda hoje persiste regulando o cotidiano dos que nele moram. As obras expostas atestam, ademais, que esse espaço geográfico e humano é partido, fundamentalmente, em raças e classes. Partição que implica uma certa distribuição de corpos brancos, pretos e mestiços em torno de diferentes ocupações e posições hierárquicas. Corpos ricos, pobres e remediados que se inserem, de modos diversos, na teia material e simbólica de que é feito o lugar recortado e representado por essas obras e documentos. Distribuição racista e classista que não é natural ou dada, mas fruto de injunções econômicas, políticas e culturais moldadas no curso da história remota e atual. Distribuição que persiste de várias formas no mundo de agora.
De modo insuportavelmente violento, persiste na execução sumária de Marielle Franco, expressão extremada do fato de que as forças mais regressivas do país querem que os corpos de mulheres negras e pobres como ela permaneçam em lugares da subalternidade, não lhes cabendo a educação desejada nem o protagonismo político alcançados pela vereadora do PSOL carioca. Aviso brutal de que a tentativa de subverter a distribuição assimétrica dos corpos que vige no país será combatida com a eliminação de quem o faça. A reprodução e a naturalização dessa distribuição desigual dos corpos muitas vezes também se dá, todavia, de maneira pacífica e cotidiana, ainda que igualmente expressem a insuportável violência daquela partição.
Tal como aconteceu hoje na reinauguração do edifício da Fundaj, sem que seus organizadores sequer pareçam ter-se dado conta do ocorrido. Ao chegar à instituição para cumprir meu papel funcional, deparei-me, do lado de fora do edifício, justo em frente à sua entrada principal, com a evolução de um Maracatu de baque solto, em que dezenas de homens (e algumas mulheres), quase todos negros, encenavam um dos mais sublimes rituais da cultura local. Entrando no prédio, e à medida que os sons do “terno” do Maracatu ficavam mais distantes, passei a escutar os sons de uma orquestra de câmara, que logo descobri estar tocando sobre um tablado instalado no pátio interno e ajardinado do edifício, local onde as “autoridades” e convidados presentes no evento – incluindo o Ministro da Educação – estavam reunidos.
Era quase uma equação. Do lado de fora, a cultura dita popular, negros e o chão da rua; do lado de dentro, a cultura supostamente erudita, brancos e um palco para a apresentação. Em nenhum momento, os integrantes do Maracatu atravessaram a porta que lhes daria acesso ao interior da instituição – guardada por seguranças e recepcionistas –, tendo partido de volta ao seu lugar de origem logo após a apresentação. Um olhar mesmo descuidado lançado ao lado de dentro, ademais, localizava a pele escura quase somente naqueles que serviam bebidas ou que limpavam o chão do lugar. Contraste de cor que ficou ainda mais evidente quando, perto do fim do evento, alguém do cerimonial resolveu fazer uma foto (quase um clássico, nessas situações) reunindo os funcionários responsáveis pela limpeza, o Ministro e os gestores da casa.
De imediato, imaginei, entre perplexo e envergonhado com o que me veio à mente, que não poderia haver melhor exemplificação para o que estava exposto na galeria do que aquilo que ocorria ali, à frente de todos, durante o evento. Sem que quase ninguém se desse conta de estar testemunhando, em tempo real, a demonstração do quão desigual é a distribuição dos corpos nesta cidade, neste país. E do quanto essa desigualdade é fundada na condição de raça e na posição classe de cada um. Tive, esta noite, a certeza da importância de fazer esta exposição, ao mesmo tempo que paradoxalmente senti – diante da performance involuntária que presenciei – o peso de seus enormes limites.
nota
NE – texto originalmente publicado na página Facebook de Moacir dos Anjos e reproduzida no portal Vitruvius com autorização do autor, após sugestão do leitor Pedro Vieira.
sobre o autor
Moacir dos Anjos, graduado em Economia (UFPE), mestre em Economia (Unicamp) e doutor em Economia (University of London). Pós-Doutorado em arte transnacional, (Camberwell College of Arts, Londres). Foi diretor geral do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Recife, 2001-2006). Com Agnaldo Farias foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. É pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) desde 1990.