Se o mural de Cândido Portinari na Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha (1943), é a imagem mais difundida da integração entre as artes visuais e a arquitetura moderna no Brasil, são os painéis abstratos de Athos Bulcão – principalmente aqueles definidos por um ou mais módulos repetidos, seja de modo ortogonal, seja em disposição propositalmente aleatória – que melhor expressam a absoluta indissociação entre a superfície estampada pelos azulejos e o perfil desta arquitetura de contorno original.
Os painéis cerâmicos mais conhecidos de Athos revestem fechamentos verticais implantados diretamente sobre o solo, como podemos observar em projetos como o Hospital Sulamérica (1952), a Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima (1958), o Brasília Palace Hotel (1958), a Sede da Editora Mondadori (1968) entre tantos outros. Essa superfície de padronagem extensível e multidirecional faz com que nossa percepção visual não se fixe em pontos específicos, mas, ao contrário, mantenha uma constante dispersão na tentativa inconsciente de apreender o painel em sua totalidade.
O uso da cerâmica esmaltada e levemente reflexiva associado à disposição variada e desprovida de proporção, ritmo e simetria desses módulos cerâmicos, faz com que abstraiamos a real materialidade e o caráter estático daquela superfície e, consequentemente, daquela parede.
As figuras que Athos cria para os módulos cerâmicos, ao final, não revelam uma relação entre figura e fundo (o que manteria uma indesejável profundidade ao plano, ainda tributária à figuração), mas uma relação binária entre positivo e negativo, na qual figura e fundo buscam justamente uma relação de equivalência e indistinção e não de hierarquia (primeiro plano e plano de fundo). E é justamente essa desmontagem visual da superfície que enfatiza o caráter moderno da forma sobreposta a ela.
Se a grande revolução urbanística e formal da arquitetura moderna consiste na efetiva demonstração da possibilidade de tocar o solo apenas nos seus pontos de apoio e assim transformar radicalmente uma lógica espacial milenar, todo e qualquer fechamento que interrompa essa leitura e que, desse modo, reaproxime a forma da própria história da arquitetura, deve ser evitado.
Nesse sentido, poderíamos dizer que os painéis de Athos preenchem planos de fechamento que, idealmente, sequer deveriam estar ali onde estão. Ou seja, o principal papel do painel de Athos é de, paradoxalmente, desaparecer e assim fazer ver, clarificar o caráter moderno desse contorno ou desse volume que o sobrepõe. Trata-se de um dispositivo formal e visual interno à própria lógica da arquitetura moderna.
Diferentemente de Portinari, os painéis de Athos não são uma estampa autônoma sobreposta à arquitetura, mas, ao contrário, são planos que contém a força que move e define a própria arquitetura. Se a arquitetura moderna brasileira é reconhecida pela sua integração com as artes visuais, Athos Bulcão é o principal responsável por esse feito.
Viva o Centenário de Athos Bulcão, um dos principais artistas construtivos do Brasil!
nota
NE – texto publicado originalmente na página facebook do autor.
sobre o autor
Rodrigo Queiroz é arquiteto (FAU Mackenzie, 1998), licenciado em Artes (Febasp, 2001), mestre (ECAUSP, 2003), doutor (FAUUSP, 2007) e professor livre-docente do Departamento de Projeto da FAU USP. Curador de exposições de arquitetura moderna, tais como “Ibirapuera: modernidades sobrepostas” (Oca, 2014/2015), “Le Corbusier, América do Sul, 1929” (CEUMA, 2012), “Brasília: an utopia come true”, (Trienal de Milão, 2010) e “Coleção Niemeyer” (MACUSP, 2007/2008).