O debate contemporâneo sobre o feminino e o masculino assumiu múltiplas facetas no decorrer do século 20 e neste início de século 21. Um dos principais alvos dos debates tem sido os papéis sociais e comportamentos impostos à força às mulheres e sua menor presença nos âmbitos de representação e decisão nas diversas esferas políticas.
Talvez um dos aspectos mais centrais nestas discussões seja acerca do que se entende por “feminino”. Algumas interpretações associam “feminino” a um conjunto de comportamentos próprios de mulheres, geralmente em contextos sociais em que se assume que os indivíduos são predestinados a determinados papéis sociais dependendo do sexo com que nascem. Hannah Arendt, em A condição humana, localiza na Grécia antiga este tipo de estrutura. Organizada em três classes, a dos cidadãos livres, a dos comerciantes e artesãos e a dos escravos e mulheres, a sociedade grega reservava apenas à primeira classe as prerrogativas dos direitos e representação política. Às mulheres, cabiam atividades de subsistência e reprodução. Interessante notar, como lembra Susana Castro, que na vida pública o homem tem a oportunidade de alcançar a imortalidade, por meio da construção de um legado constituído por atos nobres (1). Atos de criação, como a escrita, constituíam-se em estratégias para alcançar a imortalidade.
Centenas de anos após o apogeu da Grécia clássica, a noção de que a vida pública e a constituição de um legado intelectual ou artístico eram atributos dos homens permaneceu. Em 1929, Virginia Woolf já se perguntava:
“Por que os homens bebem vinho e as mulheres, água? Por que um sexo é tão próspero e o outro, tão pobre? Que efeito tem a pobreza sobre a ficção? Quais as condições necessárias para a criação de obras de arte?” (2).
Mais adiante, a autora esboça a ideia de que dentro de cada um de nós residem duas forças: uma masculina, outra feminina:
“no cérebro do homem, este predomina sobre a mulher, e no cérebro da mulher, esta predomina sobre o homem. O estado de espírito normal e cômodo é aquele em que os dois estão juntos em harmonia, cooperando espiritualmente. Se a pessoa é um homem, ainda assim a porção mulher de seu cérebro deve produzir resultados; e a mulher também deve se comunicar com o homem que há dentro de si” (3).
Mais recentemente, em seu livro Creativity: flow and the psychology of Discovery and invention, o psicólogo Mihály Csikszentmihalyi observou esse aspecto, da androginia psicológica, nas centenas de indivíduos “criativos” que estudou. Em suas palavras:
“Em todas as culturas os homens são educados para ser 'masculinos' e ignorar e reprimir aqueles aspectos de seu temperamento entendidos como 'femininos', enquanto que espera-se o oposto das mulheres. Indivíduos criativos, até certo ponto, escapam destes estereótipos rígidos de gênero. Quando testes de masculinidade ou feminilidade são aplicados em jovens, repetidamente se percebe que garotas criativas são mais dominantes e firmes e garotos criativos são mais sensíveis e menos agressivos do que os outros meninos” (4).
O feminino sombrio, representado pela Harpia, tem muitos nomes e representações. O mito de Lilith pode ser considerado o de uma Harpia arquetípica. Lua Negra, céu vazio e tenebroso, segundo Sicuteri (5), Lilith também representa “o diálogo que o homem entretém com a própria alma, vivida em sua totalidade, ou numa cisão dolorosa”. A Lilith Harpia aparecerá na história como a Ishtar, da cultura egípcia e greco-romana, ou Ashtart, na cultura hebreia, fenícia e cananeia, entre aproximadamente 3.000 AC e 1700DC. Mais adiante a Europa será alcançada pela deusa lunar celta Anu e Cibele viria a ser identificada com as deusas gregas Rea, Gea, Deméter e com suas correspondentes romanas, Tellus, Ceres e Maia (6).
As Harpias representadas nesta exposição falam sobre o estado contemporâneo do diálogo humano com sua própria alma: o dilaceramento resultante da cisão artificial, e porque não dizer presunçosa, entre masculino e feminino, operada à força pela mente racional que se esforça em vão por controlar a intuição e domesticar os instintos humanos, ambos ingredientes ígneos da criação. Expulso o feminino da consciência dos homens, ou sepultado-vivo sob camadas de discurso positivista racional, o grito da Harpia não é um grito de mulheres, mas do feminino acorrentado na alma dos homens e das mulheres que inadvertidamente consentiram em congelar a noção do feminino em apenas uma de suas fases: fértil, nutriz, geradora...
As obras de Maria Augusta Justi Pisani parecem remeter a um estado onírico e perturbador. Será esse grito intenso ouvido? Ou permanece latente no espírito de quem sonha? As tormentas representadas em cores e formas são emolduradas de escuridão e envoltas num estranho silêncio. Talvez tudo pareça bem lá fora, mas nas correntezas internas boiam e submergem pedaços revoltos de experiências passadas, pensamentos esquecidos, memórias latentes.
À espera de quê?
No trabalho de Fanny Feigenson, o interno revolto irrompe no mundo concreto sob a forma de rasgos, queimaduras. Coisas do mundo interno que vêm à tona inesperadamente, desesperadamente. O gesto não foi testemunhado, mas quem o executou ainda ronda. A Harpia grita, está por perto, mas não se sabe onde. Em que superfície irromperá sua próxima dor? No chão deste mundo marcado, estão ovos.
À espera de quê?
As Harpias aqui representadas falam sobre o feminino sombrio. Expressam sem dúvida a dor do dilaceramento, mas não só. Estas obras são, a meu ver, muito mais uma celebração do poder da criação, da transmutação da dor em algo visível e palpável. Masculino e feminino aqui fundem-se e fertilizam-se em combinações de poder, fúria, delicadeza, dúvida, claro, escuro... Têm o dom de falar ao feminino reprimido nas consciências humanas, na esperança de serem ouvidas. Oferecem um lampejo da completude que almejam as mulheres que ousam criar.
notas
NE – Texto sobre a exposição “Harpias XXI”, instalações de Fanny Feigenson, quadros de Maria Augusta Justi Pisani, textos de Ruth Verde Zein e Ana Gabriela Godinho Lima. Centro Histórico, Sala de Exposições do Térreo, Universidade Mackenzie, São Paulo, de 23 de agosto a 29 de setembro de 2018.
1
CASTRO, Susana. O enigma de Hannah. Cult. Edição especial Hannah Arendt: um pensamento atual. São Paulo, Bregantini, jan. 2018.
2
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo, Tordesilhas, 2014.
3
Idem, ibidem.
4
CSIKSZNTMIHALYI, Mihaly. Creativity: Flow and the Psychology of Discovery and Invention. Nova York, Harper Collins, 1996.
5
SICUTERI, Roberto. Lilith: a lua negra. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
6
Idem, ibidem.
sobre a autora
Ana Gabriela Godinho Lima é arquiteta e Urbanista (FAU USP, 1994), mestre em Estruturas Ambientais Urbanas (FAU USP, 1999), doutora em Educação (FEUSP, 2004). Pós-doc School of Creative Arts (Hertfordshire, 2009). Professora adjunta PPGAU Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coeditora Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UPM). Co-editora BAc Revista de Investigación y Arquitectura Contemporánea (Espanha).