Harpias celebram mitos. Os gregos as chamavam de Erínias, os romanos de Fúrias. Personificam a compensação necessária, o reequilíbrio das forças naturais desajustadas pela delinquência. Sendo essa sua missão, nem mesmo os deuses podiam obstar suas ações, terríveis e justas.
Alecto apavorava os sonhos dos que praticavam delitos morais como a ira, a cólera e a soberba. Megera gritava aos ouvidos dos que perpetravam delitos passionais como rancor, inveja, cobiça e ciúme. Tisífone enlouquecia os que perdiam a humanidade ao cometer crimes de morte.
Entidades ctônicas, viviam nas profundezas de sua mãe Gaia, mas eram representadas por mulheres aladas e de aspecto extraordinário. Ésquilo descreve seus santuários como “o lugar para onde todos voltam”, a meio caminho dos templos das graças, as deusas do perdão.
Harpias celebram a imaginação da artista. Não são pássaros ou mulheres. Personificam os conflitos que brotam da profundeza da alma humana. Formidáveis, desvelam sonhos, gritos e loucuras, se manifestam em torvelinhos e tempestades. Revoltam o ar porque são instrumentos de limpeza: removem os males da terra espiritual interior, permitindo que a força e a graça da criação artística os possa quintessenciar. Renascem em grandiosidade, imponência e beleza.
Essas harpias viscerais e catárticas, terríveis e justas, desgarram-se e entranham-se em panos. Vão se tecendo sobre os tecidos, acumulam-se qual miríades de labirintos, superpondo-se em camadas de tintas e linhas, cores e traços, formas e contornos. Estando assim postas, finalmente se libertam. De quem as criou, de si mesmas, e de quem as observa. Reveladas à plena luz racional do dia, seguirão sendo enigmas.
notas
NE – texto curatorial da exposição As mãos que restauram o tempo: um olhar fotográfico, curadoria de Luiz Antonio Lopes de Souza. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 05 de julho a 06 de outubro de 2018. Visitação: terça a sexta, das 10h às 16h30; sábados, das 10h30 às 14h30. Informações: <http://bndigital.bn.gov.br/exposicoes/biblioteca-nacional-as-maos-que-restauram-o-tempo>.
sobre a autora
Ruth Verde Zein, arquiteta FAU USP, mestre e doutora, Propar UFRGS, professora na graduação e pós graduação em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi membro do Comitê Organizador do X Seminário Docomomo Brasil, de 2013.