“No incício do século 20 foi inventada a planta livre. Na planta livre a estrutura de um prédio não era mais suportada por paredes, mas por colunas, o que permitia com que [...] se conseguisse um tipo de objeto mais livre, que poderia assumir qualquer formato; chamaram de planta livre. Na segunda parte do século 20 pareceu possível pensar o corte livre, ou liberar o corte. E eu penso que foi isto que o Kunsthal fez. Um piso não precisava ser mais um plano horizontal – na verdade poderia assumir qualquer formato – poderia se tornar uma curva, um morro, uma rampa e de alguma maneira se relacionar mais à paisagem. Acredito que esta tenha sido uma ideia perseguida em muitos dos edifícios subsequentes; liberar a seção e pensar sobre o corte como uma questão à parte”.
Rem Koolhaas (1)
Diante do terceiro edifício cultural vertical inaugurado no intervalo de um ano – entendendo que em São Paulo esta talvez seja mais uma condição do que uma recorrência – podemos especular, assim como fazemos no rés do chão, sobre as variantes do partido em altura, quando a medida de corte supera a da planta. O excerto acima, extraído da aula magna de Rem Koolhaas para as comemorações dos 25 anos do Museu Kunsthal (1987) – projeto de sua autoria em Roterdã –, é elucidativo de uma oportunidade de raciocínio arquitetônico no vetor z, ainda pouco explorada na cena brasileira. Independente da conveniência ou não, da ciência ou não dos autores, na feitura do Instituto Moreira Salles Paulista, Sesc 24 de Maio e Sesc Paulista sobre este apontamento é importante que possamos distingui-los de outra estratégia também possível.
O que Koolhaas está dizendo difere enormemente do que muitos especialistas idendificaram quanto ao protagonismo do corte na Escola Paulista – mesmo que tratando-se da segunda metade do mesmo século. Ele não está falando sobre pé-direito duplo, vazios, pátios, e outras composições espaciais que articulam planta e elevação de modo integrado enquanto recurso criativo (2), idealizadas apenas a partir do referenciado plano horizontal; pelo contrário, Koolhaas indica a possibilidade de uma total ausência de referencial tomada com tal liberdade que não fosse mais possível nem mesmo identificar pavimentos; conceito bem ilustrado pelos projetos da Très Grande Bibliothèque (1989) e Bibliotecas de Jussieu (1992). Não se trata de uma escolha aleatória entre uma estratégia ou outra, pois os resultados não são equivalentes. Se é possível uma comparação com a medicina, quando expõe em corte nosso próprio corpo – a primeira casa do homem (3) –, o corte paulista está para a radiografia tanto quanto o corte mencionado por Koolhaas está para a ressonância; o corte extrudado em oposição ao corte em alternância intermitente, em complexidades – leia-se diversidade de experiências e frutificação de novas – evidentemente distintas.
Quando Paulo Mendes da Rocha, no Sesc 24 de Maio, ratifica a nova laje no alinhamento da antiga ao invés de posicioná-la de maneira intermediária entre níveis, conforma em plenitude um pavimento – o edifício antigo inclusive lhe serviu de régua –, o resultado é a ilustração restaurada do velho e consagrado corte da Escola Paulista. Quando Vinicius Andrade e Marcelo Morettin, no Instituto Moreira Salles Paulista, dispõem o programa em área máxima, o superpõe em níveis com o gabarito total convenientemente distribuído entre os pavimentos, e extrai deste corpo estratificado a narrativa do encaminhamento público – e a ordem deste procedimento é extremamente relevante – evidencia sua herança paulista: entre as duas estratégias de corte este seria um falso cognato, diante de sua natureza que sugere sem atingir uma outra. No recém-inaugurado Sesc Paulista, de Jorge Königsberger e Gianfranco Vannucchi, a intervenção espacial mais significativa é a remoção de alguns pavimentos para a duplicação da altura de outros – sem, mesmo assim, libertar-se da aura corporativa e racional do projeto original de 1970 de Sérgio Pileggi e Euclides de Oliveira –, portanto também é tributário das lições paulistas de síntese.
Mas, antes mesmo que a estratégia de Koolhaas pareça distante e excrescente, temos condições de exemplificar nas cercanias – a partir da retomada de uma proposição arquitetônica não construída e descartada com demasiada pressa das rodas de debate – a efetividade do que está sendo colocado; trata-se da proposta de Angelo Bucci para o Instituto Moreira Salles Paulista. Ao que tudo indica a proposta ficou em segundo lugar na competição e não facilitou o trabalho dos jurados. Não por menos – e não sabemos se aqueles ponderaram da mesma maneira –, das seis propostas avaliadas foi a única que apresentou um museu vertical ao invés de um edifício de museu. O projeto de Bucci assume um compromisso com o volume disponível para a proposição, para além das relações terrenas.
Ao criar um organismo arquitetônico lido não mais como um compilado de pavimentos encimados uns pelos outros – muito embora também sejam –, mas como partes mais ou menos independentes de um todo retido entre dois eixos verticais servidores, o projeto de Bucci toma a verticalidade com naturalidade e não como empecilho. Destoa claramente dos edifícios do entorno menos porque seja uma massa sólida e opaca, mas por representar um entendimento de verticalidade contemporâneo distinto daqueles e pouco usual – e com o devido reconhecimento, futuramente explorado. É um objeto arquitetônico íntegro, que ocasionalmente é vertical – no entendimento de que as ambições que persegue não trabalham com a superação da altura, mas em cooperação com a mesma nas atividades do instituto imaginado.
Fora a herança do que já fomos, também é possível que as normas e leis de zoneamento locais – da maneira como são feitas e aplicadas – tenham infiltrado nossa percepção sobre a construção imagética dos edifícios, curiosamente até os de uso cultural; especialmente, se comparado a outras legislações, como a de Londres, onde o volume ou envelope são mais importantes do que a estratificação da construção em coeficientes e taxas bidimensionais. Seja como for, a dívida e patrimônio, ou, patrimônio endividado do corte paulista – que vale dizer, com o acesso irrestrito à informação é um caminho opcional e não mais uma rua sem saída – continua sendo objeto de nosso profundo interesse e cuidadosa atenção.
Análises como esta só são possíveis a partir das experiências edificadas – e que também fazemos edificantes –, sem as quais não chegaríamos à conclusões, ou demoraríamos um tanto mais para alcançá-las. O Sesc Paulista, ao que tudo indica, é o último da trilogia tipológica deste decênio, e junto do Sesc 24 de Maio e IMS Paulista nos ensinam lições sobre nós mesmos que nenhum edifício é capaz de fazer isoladamente. Dentro das liberdades sociais e políticas reivindicadas pelos arquitetos nos mais diversos campos, talvez devêssemos começar por aquelas de nossa exclusiva alçada – e dentre elas – o corte livre.
notas
1
Tradução parcial da aula magna de Rem Koolhaas celebrando os 25 anos do Kunsthal no dia 02 de novembro de 2017 <https://www.youtube.com/watch?v=CvJBqgGvq9c>.
2
CAMARGO, Mônica Junqueira. Artigas e a Escola Paulista. Arq.urb, São Paulo, n.14, Universidade São Judas Tadeu. jul. 2015 <www.usjt.br/arq.urb/numero-14/7-monica-junqueira.pdf>.
3
GUERRA, Abilio. Das três casas do homem. Crônicas de andarilho 10. Drops, São Paulo, ano 17, n. 113.02, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.113/6404>.
sobre o autor
Felipe SS Rodrigues é arquiteto e mestre em arquitetura (FAU Mackenzie, 2014 e 2018) com estudos complementares na New Jersey Institute of Technology (2012) e no Pratt Institute em Nova York (2013). Colaborou com o arquiteto Isay Weinfeld (2011) e com Rem Koolhaas no OMA de Roterdã (2013). Atualmente é arquiteto do processo de reconstrução do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.