Mais do que uma exposição, "Sertão expandido" é uma obra em processo. A mostra, que reúne uma seleção ampla da produção recente de Kboco, confirma a vocação generosa e sintética do artista. E demonstra sobretudo sua capacidade de gerar novos sentidos a partir da contraposição de diferentes referências. Intervindo diretamente no espaço, sem privilegiar uma técnica, suporte ou pesquisa específica, seu trabalho se alimenta de diferentes registros e procedimentos, promovendo uma fusão de tempos e lugares distintos.
Sua base geográfica é a paisagem inebriante da Chapada dos Veadeiros. Mas seu horizonte é muito mais amplo. É a partir da cidade de Cavalcante, sítio histórico e reserva ambiental, que ele se reconecta com o mundo, mesclando em seu trabalho dados plásticos e simbólicos que vai garimpando através de um olhar atento e sedimentando por meio de um cuidadoso apuro formal e estético. É importante destacar que seu interesse pelo Sertão vai muito além da paisagem natural. A paisagem humana, a reafirmação – por meio da arte – da estética e da cultura popular, é fonte permanente de referências para o artista. Referências que se traduzem na apropriação e fusão de elementos variados, símbolos arquetípicos que perpassam diferentes civilizações e culturas, formam uma espécie de trama estruturadora de toda sua obra.
É na fricção de espaços e referências que o artista dá sentido a sua produção, promovendo o que ele define como uma “arqueologia do cotidiano”. Suas telas, desenhos e instalações harmonizam elementos que aparentemente pertencem a universos distintos. Encontramos em seus trabalhos referências claras à arquitetura e à arte mourisca, à rica padronagem dos tecidos, bem como aos símbolos e entidades das religiões de origem africana. Kboco associa uma sofisticada elegância cromática e construtiva à cultura urbana do grafite, cultivando um equilíbrio tênue e fértil entre a harmonia do todo e a potência de cada uma das partes.
Tramas e cores visualmente elaboradas e sedutoras, que convivem com objetos de rudeza e simplicidade impactantes, como as madeiras de aluvião que recolhe nas margens das cachoeiras, as grades enferrujadas recolhidas aleatoriamente em perambulações urbanas ou os restos de estruturas de montagem, encontradas na reserva técnica do museu. É com olho clínico e muito de intuição que essas peças são identificadas para depois serem incorporadas nas esculturas e assemblages.
Da mesma forma que lança mão de esquemas, referências e universos visuais distintos, Kboco também não se sente confortável seguindo apenas um único tipo de linguagem. Irrequieto, ele também impõe uma ampla diversidade e experimentação nas diferentes formas de fazer arte, mesclando diferentes técnicas e não se contentando em explorar um único filão. Há artistas como Gilvan Samico, por exemplo, que se revelam dedicando toda sua energia a uma única forma de expressão, extraindo dela uma profundidade e virtuose únicas. Como o gravurista pernambucano, Kboco tem fascínio pelo arcaico, pelas crenças e riquezas da cultura popular. Mas ele age mais como um explorador versátil e curioso, que encontra no atrito das referências as fagulhas para iluminar a leitura de seu trabalho.
Na atual exposição, ele deixa claríssimo que é um músico de vários instrumentos. Adota um campo amplo de técnicas: desenho, pintura, escultura, assemblage e grafite. Também tem se mostrado um exímio fotógrafo, apesar de a técnica não ter encontrado ainda espaço para ser mostrado, e revelado um grande interesse na linguagem do vídeo, que vem explorando em parceria com Iago Mati e que deve render uma série de desdobramentos no futuro próximo.
Todos esses caminhos são responsáveis por ampliar a força do conjunto. Mas ao mesmo tempo apresentam características bastante particulares que ajudam a compreender melhor os eixos de pesquisa trilhados pelo artista em seus mais de 20 anos de produção. Enquanto nas obras bidimensionais (desenho e pintura), a virtuose compositiva tem grande peso, na escultura predomina o improviso, a síntese e o contraste entre a natureza bruta e a interferência urbana parecem dominar a cena. Em alguns momentos ele parece estabelecer provocações, explorar a fronteira entre as representações no plano e as construções no espaço. Enquanto a complexa trama faz com que suas pinturas pareçam saltar para a tridimensionalidade, as intervenções unificadoras dos elementos escultóricos sugerem um tratamento bidimensional e unificador dos objetos, como em Wabi Sabi Saravá.
O grafite, meio de expressão que teve grande importância no início da carreira do artista, atua nesta exposição como uma espécie de elo condutor, como uma sutil e precisa forma de evidenciar que não se tratam de trabalhos esparsos, mas sim de um todo multifacetário. A elegante intervenção realizada na escada projetada por Oscar Niemeyer é um exemplo claro desse procedimento ao mesmo tempo iconoclasta e sincrético. A ação é elegante, contida. Serve mais para iluminar o movimento sinuoso da arquitetura modernista de Niemeyer, seu lado escultórico, normalmente louvado até por seus críticos. Não usa Niemeyer como um palanque, mas reafirma a força de sua poética, ao fazê-lo reconectar os diferentes núcleos de trabalhos espalhados pelo espaço. E sobretudo desmonta a leitura mais óbvia da escola modernista como algo frio e esquemático.
A conexão estabelecida por meio das intervenções pontuais realizadas na sala do museu não é apenas interna ou espacial. Ela também permite destacar algo muito peculiar na estratégia compositiva de Kboco: sua impressionante capacidade de absorver e reinterpretar influências extremamente díspares. Digerindo referências variadas, dentre as quais podemos citar uma ampla lista, que vai de Burle Marx e Samico a Basquiat, ele não apenas promove sínteses. Embaralha os elementos em conexões suaves que acabam por detonar novos sentidos, perceptivos e conceituais. Por trás da aparência sedutora de seu trabalho, se escondem várias camadas de significados, que exigem uma certa paciência e atenção para serem desvendados.
Há momentos em que temos a impressão de estar diante de palimsestos, tamanha a superposição de referências. A colagem – enquanto técnica e referência conceitual – é um dos elementos chaves de sua criação. Num primeiro momento, identifica-se apenas o processo de soma e harmonização, mas a observação pouco a pouco vai revelando outros elementos, como a citação/homenagem que Kboco faz ao amigo Sidney Amaral, autor de uma obra potente acerca do papel do povo e da cultura negra na arte brasileira, que faleceu precocemente em 2017. Amaral, que usava com frequência sua própria imagem nos trabalhos, ressurge dando novo significado – político e militante – à poética de Kboco.
Em outros momentos, é o título (que na obra do artista goiano possui um quê de ironia surreal) que auxilia a ampliar as possibilidades de leitura da obra. A chave nem sempre é evidente, como no caso de F. M. S – 17, uma referência bastante velada a Farnese de Andrade e Mondrian. Em princípio dissonantes, as poéticas do artista mineiro (autor de uma das mais belas obras feitas a partir de elementos de descarte, como bonecas destroçadas, coletadas à beira-mar) e do mestre da abstração holandês, se tornam mais do que consoantes. Constituem – juntamente com várias outras referências cativantes –, o chão fértil a partir do qual sua arte se desdobra.
nota
NE – Texto curatorial da exposição “Sertão Expandido”, do artista plástico goiano Kboco, curadoria de Maria Hirszman, Museu Afro Brasil, Parque do Ibirapuera, de 23 de junho a 26 de agosto de 2018.
sobre a autora
Maria Hirszman é jornalista, crítica de artes e curadora.