Durante a Primeira Guerra Mundial, o dramaturgo italiano Luigi Pirandello escreveu a peça “Assim é se lhe parece” com a intenção de demonstrar, entre outras coisas, que não existem verdades absolutas e sim pontos de vista diversos. Parece incrível que, um século depois, ainda há gente querendo impor suas verdades como se fossem dogmas irrefutáveis.
Durante a última campanha eleitoral, o que não faltou foram falsas verdades para desmoralizar adversários e confundir a opinião pública. Ainda hoje, continuam circulando textos doutrinários postados por quem não digeriu a derrota e um repertório de mensagens debochadas dos que permanecem excitados com a vitória do seu candidato.
Acho que chegou a hora de dar um basta a essas posturas revanchistas e olhar a realidade com mais sensatez. Estou seguro de que neste momento a isenção político-partidária nos levará a melhor compreender o que de fato está acontecendo no país. Os discursos contundentes e controversos do novo governo exigem especial atenção para compreender os rumos que estão sendo tomados.
Em regimes democráticos, não dá pra se submeter a qualquer espécie de imposição e muito menos ao constrangimento de ver tolhida a livre expressão do pensamento. Em geral, governantes com perfil autoritário não costumam tolerar quem não compartilha dos seus ideais restritos. Ao afirmar que livrou o país das amarras ideológicas de governos passados, o presidente adota, contraditoriamente, uma postura ideológica.
A promessa de governar para todos poderá esbarrar nos rígidos princípios culturais e comportamentais defendidos euforicamente pelo presidente e alguns dos seus ministros. Afinal, tal forma de pensar se choca com o modo de agir de uma expressiva parcela da população refratária a preconceitos de qualquer espécie.
Nesse sentido, basta observar as posturas ortodoxas defendidas pelos ministros da Educação; das Relações Exteriores; do Meio Ambiente; e da Mulher, Família e Direitos Humanos. Em seus pronunciamentos fica evidente uma perspectiva ideológica contrária aos avanços culturais do mundo globalizado e uma nítida negação às conquistas comportamentais da sociedade contemporânea.
Ao agregar no Ministério da Cidadania, o Desenvolvimento Social, o Esporte e a Cultura, teme-se que a dotação orçamentária da área cultural não contemple as suas verdadeiras necessidades. Preocupa-nos saber que a Lei Rouanet, que vigora desde o governo Collor e tem contribuído para o desenvolvimento cultural da nossa sociedade, corre o risco de ser mutilada por não gozar da simpatia pessoal do presidente da República.
Também causa preocupação a ladainha em defesa de comportamentos pseudomoralistas. Felizmente, a história mostra que a hipocrisia e as posturas farisaicas não resistem a certos fatos que emergem de onde menos se espera. Explicações sobre atitudes escusas envolvendo pessoas ligadas ao presidente e seus familiares — me refiro especificamente ao caso do amigo citado no relatório do Coaf — não podem ser esquecidas ou varridas para debaixo do tapete.
Ganhar as eleições pode ter sido fácil, porém governar uma nação com contrastes sociais, culturais e econômicos tão complexos quanto os nossos, há que se reconhecer que é uma tarefa bem mais difícil do que se possa imaginar. O grande apoio recebido de parte do eleitorado não confere aos novos governantes o direito de acenar com um modelo absolutista de poder.
Como o mandato apenas se inicia, é de bom tom desejar boa sorte ao novo presidente e dele esperar o que de melhor tenha a oferecer à população brasileira. A princípio, pode parecer uma meta ambiciosa, já que a retórica utilizada em suas primeiras manifestações mantém a agressividade adotada durante a campanha eleitoral. Apesar da perplexidade diante de tais manifestações, anseio por um clima de paz e harmonia que contemple, sem discriminação, os diferentes extratos da nossa sociedade.
nota
NE - Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. Assim é se lhe parece. O Globo, Rio de Janeiro, 05 jan. 2019.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.