“En la desierta sala el silencioso libro viaja en el tiempo...”
Jorge Luis Borges, Ariosto y los árabes
Há uns anos, quando acabara de escrever o romance Cinzas do norte, sonhei com algo que nunca esqueci: o sumiço da biblioteca na casa da minha juventude. No sonho – que parecia um pesadelo – não encontrava os volumes dos primeiros romances e contos que havia lido quando jovem. Ao tentar recompor as imagens sonhadas, recordava essa pequena biblioteca sequestrada pelo sonho. Nela constavam os livros que foram essenciais para minha formação de leitor.
A casa da juventude foi demolida há muito tempo, mas esses livros – contrariando o pesadelo – sobreviveram em outra morada. E sempre que volto a Manaus, revejo numa estante os volumes editados há mais de meio século: Vidas secas, Infância, Histórias da meia-noite, Três contos, O vermelho e o negro, Coração das trevas, Madame Bovary, Capitães da areia, O continente, Os sertões e vários exemplares publicados pela antiga Livraria/Editora Globo, de Porto Alegre.
Quando li esses livros, minha imaginação viajou por regiões do Brasil e de outros países, que eu desconhecia.
A literatura é um artifício, uma inventiva construção verbal, mas é também um modo particular de ver o mundo e transcendê-lo. A linguagem dá espessura e vida a um microcosmo em que dramas e conflitos humanos são inventados.
Num de seus prefácios, o argentino Jorge Luis Borges escreveu: “Por vezes creio que os bons leitores são cisnes ainda mais tenebrosos e singulares que os bons autores... Ler é uma atividade posterior à de escrever: mais resignada, mais cortês, mais intelectual”.
Quando um escritor elege alguns livros e reflete sobre eles, significa que essas leituras foram relevantes, talvez decisivas para sua futura atividade de ficcionista ou poeta. Penso que a essência do projeto Estante Viva consiste nessa relação afetiva e intelectual de escritores brasileiros com uma seleta biblioteca que compõe uma história particular da leitura.
nota
NA – Texto escrito para o projeto "Estante Viva", do Sesc Belenzinho, 2014.
sobre o autor
Milton Hatoum, arquiteto formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, é escritor, autor de um Relato de um certo oriente, Dois irmãos, Cinzas do norte e Órfãos do eldorado e diversos outros livros, ganhadores do Jabuti e outros prêmios importantes.