As universidades públicas efetivam pesquisas estratégicas para a sobrevivência do povo brasileiro. Elas produzem técnicas, teorias, saberes em todos os prismas da cultura. Mas, como todo setor, aquelas instituições apresentam faces hediondas.
Pope dizia que no homem se concentram o orgulho e a vergonha da natureza. O mesmo pode-se adiantar sobre boa parte de nossas faculdades. Vários defeitos das chamadas classes dirigentes são repetidos pelos docentes e pelos alunos: a troca de favores, o sectarismo, a irresponsabilidade em face do patrimônio público.
Nos trotes nota-se o hábito do uso privado da força, comum entre coronéis que alugam capangas para impor seu mando. Nas calouradas, quadrilhas estudantis, sob covarde anonimato, empregam a violência física para destruir pessoas que deveriam receber garantias do Estado. Como este não pode se apresentar imediatamente nas escolas, seus representantes são os funcionários, os dirigentes, os professores. Cabe-lhes impor o direito nos estabelecimentos de ensino. Mas um silêncio cúmplice une bandidos acadêmicos e muitas autoridades universitárias.
Pior: a ética é um complexo de comportamentos que se tornam automáticos, assumindo a aparência de “naturais” para quem é sua presa. A vida ética é um fato de gerações. Os alunos são acarinhados por docentes que, eles mesmos, sofreram ou aplicaram os rituais torpes dos trotes. Existem professores que se calam, sorriem e incentivam práticas fascistas. Se a maior parte dos lentes exprimisse, todo dia de aula, desprezo e ojeriza diante de procedimentos daquele naipe, diminuiria o número de assassinatos nos campi.
Um equívoco da universidade pública foi ter-se feito cativa da classe média brasileira. Como não se definem como proprietários dos meios produtivos e têm horror de cair na vala comum dos trabalhadores, os pimpolhos daquela classe tentam encontrar nas faculdades o meio para subir na vida social, política, econômica, artística. Ilusão: basta ver o número de engenheiros e seus pares desempregados, vendendo sanduíches em grandes centros urbanos. Alguns “chegam lá” e são admitidos em firmas importantes, entram para o quadro de hospitais, das Bolsas de Valores, do governo. E se tornam inconscientes proprietários de seus diplomas, dando as costas para quem custeou, por meio de impostos, seus estudos.
A universidade não tem reconhecimento público porque não se empenha nos setores negativamente privilegiados. Tudo o que ela aplica nos trêfegos donzéis e moçoilas da classe média morre, em termos sociais, no dia da formatura ou do título doutoral. Médicos que, na hora de receber honorários, perguntam aos clientes se querem pagar "com recibo ou sem recibo" (tendo sido formados em escolas públicas) exibem a ética da malandragem, una e coerente desde o dia em que receberam ou deram trotes.
Na Unicamp, há pouco tempo, alunos acharam espirituoso abrir hidrantes e inundar a biblioteca do Instituto de Filosofia, afogando volumes raros e caros de Platão e de Aristóteles. Os livros danificados ainda estão no Centro de Memória da universidade, para reparos. Os responsáveis não foram atingidos. Quem inunda bibliotecas e manifesta desprezo pelo que de mais sublime o pensamento humano produziu está pronto para afogar seres humanos, como aconteceu na USP (1). Até quando professores e autoridades acadêmicas vão tolerar os valores negativos da classe média, essa sementeira de fascismos?
Paulo Denisar Vasconcelos, jovem professor da Universidade Federal de Santa Maria (RS), publicou um livro que ajuda alunos e docentes a refletir sobre os trotes: A violência no escárnio do trote tradicional (2). Com o fabuloso "Escuta, Zé Ninguém", de Wilhelm Reich, esse volume deveria ser leitura obrigatória nos vestibulares de todas as áreas – em especial da médica, suposta responsável pela vida, mas na qual, não raro, são geradas mortes programadas em festins de assassinos estudantis.
notas
NE – A divulgação de trote em universidade de Franca, onde alunas calouras do curso de medicina foram coagidas a prometer não recusar sexo aos veteranos do curso, o professor de filosofia Roberto Romano disponibilizou na sua página Facebook artigo de sua autoria publicado no jornal Folha de S.Paulo, em 1999. Depois de duas décadas o conteúdo do artigo permanece tão atual que foi assim confundido pelos leitores, como pode se observar nos diversos comentários e compartilhamentos. Sobre o trote atual, ver: OKUMURA, Renata. Em trote, calouras 'juram' não recusar 'tentativa de coito'. São Paulo, portal Terra, 6 fev. 2019 <https://bit.ly/2Sj4INl>.
NA – Publicação original do texto: ROMANO, Roberto. Trotes: o afogamento do espírito. Folha de S.Paulo, São Paulo, 22 abr. 1999 <https://bit.ly/2TFcZYz>.
1
NAVARRETE, Gonzalo. Corpo de Edison Tsung Hsueh, que entrou este ano na faculdade, foi encontrado após festa de confraternização. Calouro de medicina morre em piscina da USP. Folha de S.Paulo, São Paulo, 24 fev. 1999 <https://bit.ly/2IaEkQW>.
2
VASCONCELOS, Paulo Denisar. A violência no escárnio do trote tradicional. Um estudo filosófico em antropologia cultural. Santa Maria, UFSM, 1993.
sobre o autor
Roberto Romano, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.