A pintura de Robert Ryman, falecido em 08 de fevereiro de 2019, aos 88 anos, em Nova York, é a imagem que melhor define os desdobramentos do expressionismo abstrato na “Minimal Art”.
A Arte Minimalista ganha os holofotes no ambiente das artes plásticas nos Estados Unidos no início da década de 1960, mas nesse período ainda atendia por nomes como Cool Art, Estruturas Primárias e Arte Literal. O termo “Minimal Art” (cuja tradução correta para o português seria “Arte Mínima”) foi utilizado pela primeira vez em ensaio homônimo escrito pelo filósofo da arte inglês Richard Wollheim (1923/2003), em 1965.
Para a compreensão dos procedimentos e das motivações que constituíram a pintura minimalista, como as obras de Agnes Martin (1912/2004), Anne Truitt (1921/2004) e Robert Rymann (1930/2019), faz-se necessário localizar as transformações ocorridas no campo das artes visuais nos Estados Unidos a partir do final da década de 1940.
O expressionismo abstrato é o movimento que marca a principal mudança na centralidade geográfica das artes visuais no século 20, da Europa para os Estados Unidos, após o término da 2ª Guerra Mundial. Em certa medida, no âmbito da produção moderna, o século 20 pode ser dividido quase que simetricamente em duas metades, sendo a primeira compreendida pelos movimentos europeus de desmontagem do espaço realista, dos gêneros da pintura e da própria figuração (cubismo, expressionismo, vanguardas construtivas, arte conceitual e dadaismo) e a segunda metade, pelo menos nos Estados Unidos, caracterizada pelas hipóteses formais deflagradas pelo expressionismo abstrato e seus desdobramentos mais imediatos, seja de continuidade, seja de reação, respectivamente e quase que simultaneamente, o minimalismo e a pop-art.
As grandes dimensões da tela e o achatamento do espaço realista (figura/fundo e planos oblíquos de convergência) em um plano que se recusa a simular a histórica profundidade pictórica são características comuns às duas principais correntes do expressionismo abstrato: a “pintura de ação” (action-painting) e a “pintura de campos de cor” (color-field painting).
A “pintura de ação” caracteriza-se pela a marcação na tela do movimento rápido do gesto, que pode ser tanto o resultado do contato direto do instrumento com o suporte, como uma marca literal do movimento não apenas da mão, mas do corpo como um todo, reconhecível nas obras de artistas como Willem de Kooning (1904/1997) e Cy Twombly (1928/2011), ou como registro de um gesto que não toca o suporte, consequência do derramamento da tinta sobre a grande tela estendida no chão, também conhecido como “dripping” (gotejar, respingar), marca registrada do artista cuja obra é a própria imagem do expressionismo abstrato, Jackson Pollock (1912/1956).
Nas “pinturas de campos de cor”, o gesto dá lugar às superfícies que tendem à uma homogeneidade difusa, alternativa à fácil simplificação construtiva de um mero plano monocromático completamente uniforme. Em determinadas obras de artistas como Mark Rothko (1903/1970), Barnett Newman (1905/1970) e Clifford Still (1904/1980), assim como nas pinturas de Pollock de grandes dimensões, a disposição da informação pictórica, em uma contraditória uniformidade irregular, desafia nossa percepção, já acostumada a focar no centro da tela (para onde a “janela” do espaço ilusionista se abre), a apreender a tela como um todo. Não há zonas de concentração e rarefação evidentes que “puxem” o olho. No caso das “pinturas de campos de cor”, o aspecto nublado, confere uma espacialidade rasa, curta e atmosférica. As mudanças de cor em regiões próximas das zonas periféricas da tela (soluções típicas de Rothko e Newman) espalham o foco do observador para as bordas e, muitas das vezes, para além da própria tela, que é percebida como um campo integral, sem trechos específicos que despertem a atenção, também conhecido como “all over”.
Essa breve apresentação do Expressionismo Abstrato se justifica, pois, determinadas ações do minimalismo ou “Art Minimal”, principalmente na pintura, podem ser compreendidas como um desdobramento deste movimento, mais precisamente da “colour-field painting” .
A pintura de Robert Ryman revela claramente seu esforço em suprimir a autonomia de qualquer elemento pictórico que insinue a presença da representação e consequentemente da ilusão de um espaço para além da tela. A questão central não é mais sobre “o que” se pinta, mas a pintura como uma ação que se basta em si mesma.
Contudo, a pergunta que fica é: se a suposta busca da pintura minimalista seria a elaboração de um plano absoluto, sem pistas que revelem a condição histórica da própria pintura e a consequente presença de uma profundidade também histórica, por que o resultado final dessa pesquisa não se constitui como um plano perfeitamente uniforme e monocromático?
Aliás, se essa redução absoluta fosse o objetivo final da pintura minimalista, concluiríamos que nem mesmo a pintura, enquanto fatura humana, seria mais necessária. Bastaria atribuir o valor de obra de arte à uma superfície impecavelmente plana, regular e uniforme, que não revelasse vestígios nem da mão humana, nem de uma natureza primal (madeira, argila e pedra). Tais características são encontradas e identificam muito mais a experiência minimalista no espaço – como podemos observar nas obras de Donald Judd (1928/1994) e Walter de Maria (1935/2013) – do que na própria pintura.
Quanto o “objetivo final” é a síntese, a proximidade desse objetivo, ou seja, o “zero”, é sempre angustiante. Afinal, o que fazer após alcançar o “objetivo final”? Só há duas alternativas: reproduzi-lo e aperfeiçoá-lo à exaustão (o que não passa de uma inútil tentativa de sobrevida a um paciente terminal) ou descobrir (ou mesmo inventar) um novo problema como estratégia de sobrevivência ou renascimento intelectual.
A opção pela manutenção de uma pintura artesanal, sem o uso de conhecidos instrumentos de precisão (como régua, fita adesiva ou mesmo pistola de ar comprimido) cujo objetivo é justamente apagar os vestígios da mão, coloca a pintura de Ryman em um lugar peculiar dentro da lógica da Minimal Art. A redução cromática ao uso quase que exclusivo da tinta branca revela que, apesar da presença do gesto, sua pintura resiste às decisões que sinalizam para a arbitrariedade ou à subjetividade autoral. A pincelada, mesmo que à mão, se repete em divisões iguais que preenchem uniformemente todo o campo da tela, como um “all over”, só que mais material e regular. O limite do comprimento da pincelada vai até aonde o pincel consegue impregnar a mesma quantidade de branco.
Se Robert Ryman abrisse mão da presença do gesto, o caminho em direção ao “objetivo final” seria previsível, curto e fatal. Nesse jogo, o objetivo principal do jogador não é ganhar, mas continuar jogando, pois, se você ganha, o jogo acaba. Ou seja, a continuação do jogo resulta da relação dialética entre o artista e o “objetivo final”, que, no fundo, ele sabe muito bem qual é: o fim da arte.
sobre o autor
Rodrigo Queiroz é arquiteto (FAU Mackenzie, 1998), licenciado em Artes (Febasp, 2001), mestre (ECA USP, 2003), doutor (FAUUSP, 2007) e professor livre-docente do Departamento de Projeto da FAU USP. Curador de exposições de arquitetura moderna, tais como “Ibirapuera: modernidades sobrepostas” (Oca, 2014/2015), “Le Corbusier, América do Sul, 1929” (CEUMA, 2012), “Brasília: an utopia come true” (Trienal de Milão, 2010) e “Coleção Niemeyer” (MAC USP, 2007/2008).