“O alvo do olhar estrangeiro”, título do seu livro mais conhecido, é, na verdade, sua tese de doutorado defendida na Escola Técnica Superior de Barcelona nos anos 1990 sob orientação de Fernando Alvarez Prozorovich. O interesse principal do livro era compreender o modo como os historiadores da arquitetura, desde fora do Brasil, e os editores de revistas especializadas internacionais “olharam" para cá e quanto desse como continha o DNA de Lúcio Costa. Talvez o título do livro ajude a entender parte do modo como Nelci Tinem construiu seu mundo; para mim foi sempre por meio de um olhar estrangeiro. Foi uma nissei no interior do Estado de São Paulo (os pais vieram de Okinawa), uma caipira de Sorocaba na capital paulista (no cursinho nos anos 1960), uma paulistana em Brasília (na graduação nos anos 1970) e em Porto Alegre (no mestrado nos anos 1980), uma brasileira em Barcelona (no doutorado nos anos 1990) e tudo isso ao mesmo tempo em João Pessoa (na UFPB entre 1977 e 2019).
É bem provável que o pioneirismo e a coragem implícitos nas decisões que a motivaram se mover desta maneira forjaram uma forma de ver as coisas, em especial a arquitetura e a cidades: crítica, ácida e sempre certeira. Talvez tenha sido essa espécie de olhar estrangeiro contínuo que a fazia se arrepiar quando alguém usava o termo regionalismo ou escola referindo-se a qualquer aspecto identitário. A Japa via as coisas sempre de outro modo…
Nelci Tinem dedicou quatro décadas de sua vida ao Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPB. Teve um papel central – por meio dos seus escritos e dos seus orientandos – na divulgação da Arquitetura Moderna do Estado da Paraíba e formou, na base, um número muito expressivo de pesquisadores que hoje atuam em muitos órgãos de preservação e Instituições de Ensino Superior – IES espalhados pelo país. Estabeleceu uma relação direta com o curso de pós-graduação da USP de São Carlos, mais especificamente com Carlos Martins e Renato Anelli, para onde foi boa parte dos seus principais ex-alunos de graduação e colaboradores diretos. Além da UFPB, atuou nos Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia – UFBA e do Rio Grande do Norte – UFRN, e foi uma assídua pesquisadora junto ao Docomomo Brasil, seu principal fórum de debate.
Nelci tinha amigos em todos os cantos do país e de todas as idades. Estes contatos lhe serviam para criar pontes entre as pessoas, como tão certeiramente percebeu Abilio Guerra. Tinha uma capacidade incomum de reunir pessoas em torno a projetos coletivos: livros, exposições, seminários, reuniões, pesquisas etc. Era praticamente impossível dizer não para uma de suas constantes convocações. Nestes projetos, cuja coordenação conduzia de modo rigoroso, nunca buscou protagonismo, sempre preferiu a retaguarda, de modo que fossem criadas as condições para que seus colegas, colaboradores e amigos pudessem aparecer. A Japa tinha uma generosidade rara…
O AVC que sofreu nos anos 1990 não a fez parar, diminuiu sua capacidade de trabalho momentaneamente até que se readaptasse. Continuou escrevendo e trabalhando muito, talvez até demais. A Japa era dura na queda…
Há uma década participou decisivamente do grupo fundador do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba – PPGAU UFPB. Desde então se dedicou com todas as suas energias ao programa de pós. A fragilidade crescente do seu corpo e a dificuldade de se movimentar nos últimos anos contrastavam com sua capacidade de trabalho. Ela ignorava os obstáculos e os indícios. A Japa era teimosa e determinada…
A criação do curso de doutorado em 2015 claramente lhe deu mais ânimo. Parecia que nada podia fazê-la parar. Nos últimos anos, mais frágil fisicamente, escreveu outros três livros, orientou quase duas dezenas de pesquisas de mestrado e cinco teses de doutorado. Hoje, pensando bem, acho que a Japa tinha pressa…
Na última quinta-feira demos aula juntos. Ao final, ela levou todos os estudantes para um café e, como sempre, fez questão de pagar. Eu não pude ir. Tínhamos marcado para a segunda-feira seguinte um dia inteiro de reuniões com a participação de vários colegas que viriam inclusive de Recife. Ela me deu um beijo e disse “até segunda”. Não a vi mais. A Japa era assim, discreta…
Até breve Nelci.
PS – Tive o privilégio de trabalhar com Nelci nos últimos nove anos. Nós dividimos salas de aula, pesquisas, textos e livros. Durante esse período ela participou diretamente de todas as oportunidades profissionais que eu tive, virou amiga da minha família e tia do meu filho mais velho. Ouvi, nesses anos, histórias deliciosas de brigas e festas memoráveis. Ela adorava tanto uma boa briga como uma boa festa. A Japa era uma guerreira… Digite uma mensagem...
sobre o autor
Marcio Cotrim é doutor em História da Arquitetura, História Urbana pela Universitat Politècnica de Catalunya (2008). Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DAU/UFPB e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFPB. Pesquisador do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM) e do Grupo de Pesquisa Projeto e Memória do CNPq.