Todos conhecem o enunciado aristotélico segundo o qual o amigo é como um outro eu. Na Ética a Nicômaco são esmiuçados os sentidos da amizade, inspecionando o filósofo por exemplo se o homem ruim pode ser amigo, visto que para tanto é preciso bondade e a pessoa perversa nada tem de bom. A análise aristotélica é minuciosa e muito exata em termos políticos, eróticos, comerciais, sociais etc. Mas na Grécia de seu tempo os termos philia e eros não se definiam muito rigorosamente. E talvez por tal motivo ele não se aprofunde no fato da separação dos amigos (ou amantes) de modo tão pungente quanto Platão, no mito do Andrógino. Uma esfera perfeitamente redonda, um ser uno que é atacado de hybris e deseja chegar ao divino foi cortado ao meio e, a partir de então, busca a outra parte sua com desejo e dor. Aqui, me parece, Platão capta o quanto é dolorosa a quebra de um laço amoroso ou de amizade. Imaginávamos que o outro fosse o nosso eu, mas ele não apenas se mostra... outro, como não partilha os nossos anseios, desejos, tristezas, alegrias. Voltamos à solidão insuportável, à dor mais sentida quando o amor ou amizade são rompidos. Há um belo livro, no meu entender sempre atual, do psicanalista Igor Caruso, intitulado A separação dos amantes (1). Vale a pena ler ou reler.
Muitos de nós, tenho a desconfiança, vivem a dor da separação mencionada. Familiares, amigos, amantes, de repente mostram simpatia pela tortura, pela tirania, pela mentira, pelo jogo inescrupuloso do poder. Tudo o que em nós berra baixeza. E chega a hora de dizer adeus. Muitas vezes mal curados, seguimos com lambões meio apodrecidos do amigo, do amante, do familiar dentro de nosso peito. A dor nos torna amargos e surge, lá no fundo da alma, o desejo de vingança nutrido pelo ressentimento. Nas redes sociais, então, despejamos o fel gerado pelo desencanto e assumimos atitude rígida em relação ao outro, a todos os outros.
Tal paixão melancólica só pode ser vencida pelo afeto da alegria. E aí Spinoza tem muito a nos ajudar. Na Ética ele ensina o sentido da força que vigora em nós e da tristeza que devemos afastar para reassumir a vida no seu resplendor e plenitude. Tal é a doutrina do conatus sese conservandi (ao contrário do que diz equivocadamente Theodor Adorno): para viver em amizade importa aumentar a nossa força com a alegria. Amigos? Como cada um de nós é expressão do Eterno e como o Eterno tem infinitas expressões individuais, se um amigo perdemos, se mantivermos a nossa força, outros e outros encontraremos. Sentimus experimurque nos aeternos esse: sentimos e experimentamos que somos eternos. Ou seja, o outro nos dá força e alento, vida, eternidade. Saibamos vencer, pois, a tristeza de hoje, quando a violência reativa assume a vida dos indivíduos e coletivos.
Não passarão!
notas
NE – Texto publicado originalmente na página pessoal no Facebook e republicada no portal Vitruvius com a autorização do autor.
1
CARUSO, Igor. A separação dos amantes. São Paulo, Cortez, 1989.
sobre o autor
Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles Brasil, Igreja contra Estado (Editora Kayrós, 1979), Conservadorismo romântico (Editora da Unesp), Silêncio e ruído, a sátira e Denis Diderot (Editora da Unicamp), Razão de Estado e outros estados da razão (Editora Perspectiva).