É difícil seguir o enxurro de atitudes nocivas que o governo da República desencadeia dia após dia. Surgem da brutalidade mais incivilizada.
Dentro dos meus limites, porém, consigo perceber algumas constantes. Uma delas é o extermínio do ensino superior e da pesquisa. Estão sendo demolidas as universidades e os órgãos de fomento, essenciais para a ciência, tecnologia e conhecimento, portanto imperiosos à prosperidade do país.
Nisto, os atuais mandantes distinguem-se dos ditadores militares. Estes perseguiram professores por motivos ideológicos: destituíram, exilaram, torturaram e mataram. Contudo, se minhas contas são boas, criaram também 14 universidades federais.
É que os militares tinham um projeto desenvolvimentista e nacional para o país. Parecia-lhes importante o fortalecimento de uma indústria brasileira, com características e soluções próprias: basta lembrar, por exemplo, do Programa Nacional do Álcool, implantado em 1975.
O positivismo, com seu amor pela ciência e pelo progresso, formou uma importante base filosófica para as Forças Armadas. Na história da física brasileira, bem antes do golpe de 1964, um nome maior é o do almirante Álvaro Alberto, cuja contribuição direta para a ciência é tão grande quanto sua luta pela autonomia energética do país.
Em 1951, criou o CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, do qual foi o primeiro presidente – esse mesmo CNPq que está hoje na mira do abate.
O ogro da Virgínia condena com raiva os militares nesse ponto. Ele, que nunca frequentou universidades, as acusa de terem sido sempre antros de “comunistas”.
Acusação que pressupõe um projeto político, ideológico e moral: as universidades, centros de orgias, existiriam só para destruir a civilização cristã. Entende-se por comunista qualquer um que deseje a diminuição das desigualdades econômicas e sociais.
Porém, o horror ao conhecimento e o espantalho do medo ideológico talvez não sejam explicações suficientes.
Está muito claro o abandono à indústria nacional. A ideia de que um país se desenvolve graças à diversidade da produção e da transformação virou letra morta.
“Desde quando o Brasil precisa da Argentina para crescer?”, pergunta o ministro da Economia a respeito de um país essencial para as exportações brasileiras de produtos industrializados.
O economista Paulo Gala escreveu na Folha: “Nosso nível de produção industrial está hoje 20% abaixo do nível observado em 2014 e a apenas 20% acima do registrado nos anos 1980, uma tragédia” (1).
A fúria do governo em defender o desmatamento e a invasão de reservas indígenas sugere uma aliança forte com o agronegócio. Mas com um agronegócio primitivo, predatório, nostálgico do fazendão, do trabalho escravo e das queimadas, ávido de agrotóxicos, sem pensar na configuração do mundo de hoje.
O mistifório de Brasília nos indispôs contra países importadores de nossos produtos agrícolas: os árabes, a Europa, sensível às questões do meio ambiente. E nos alinha com os Estados Unidos, o maior concorrente!
Um país assim não precisa nem de pesquisa nem de universidades. Acrescente-se a metamorfose do Brasil em vassalo direto e sem disfarce dos Estados Unidos. Nessa perspectiva, qualquer veleidade de independência científica e tecnológica desaparece, pois basta importá-la. Por que então gastar com cientistas, pesquisadores ou universitários brasileiros?
É assim que, submetidos à política econômica internacional dos Estados Unidos, dependentes no campo da tecnologia e da ciência, teremos um país fragilizado, cada vez menos capaz de defender-se diante de todas as dificuldades. Ainda mais que, travando uma guerra de resultado incerto com a China, os EUA arriscam também seu próprio futuro.
É a política do “Rei da Vela”, peça que Oswald de Andrade escreveu em 1933, quatro anos depois da crise que empobreceu grandes fazendeiros:
“As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pode pagar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente”.
“Mas compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você acredita que New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da Terra se não se trabalhasse para Wall Street de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! Mas não me queixo” (2).
nota
NE – Publicação original do artigo: COLI, Jorge. Submetidos à política dos EUA, repetimos 'O Rei da Vela'. Folha de S. Paulo, São Paulo, 1 set. 2019.
1
GALA, Paulo. A indústria brasileira implodiu, não será fácil resgatá-la. Folha de S.Paulo, São Paulo, 1 ago. 2019 <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/08/a-industria-brasileira-implodiu-nao-sera-facil-resgata-la.shtml>.
2
ANDRADE, Oswald. O rei da vela. 2a edição, 7a reimpressão. São Paulo, Editora Globo, 2008. p. 61; 63.
sobre o autor
Jorge Coli é professor titular de história da arte na Unicamp e autor de O corpo da liberdade (Cosac Naify).