A mitologia natalina – esqueça os presentes – está apoiada na ideia de renascimento, na nostalgia de um tempo em que o ciclo da vida se completa e repõe, como as estações do ano, o dia e a noite ou a criança que sucede ao ancião. Para os cristãos, a celebração da criança que veio para nos redimir e nos ensinar a amar.
Por isso é lugar comum no jornalismo a série de balanços do que foi o ano que se encerra e do que se pode esperar daquele que se inicia. Mas às vezes um ano não termina, como propõe o livro de Zuenir Ventura sobre 1968, que meio século depois continua um emblema para o bem e para o mal.
Creio que, daqui a muitos anos, perceberemos 2019 como um ano que interrompeu o circulo mais ou menos virtuoso do renascimento e da restauração. Que perceberemos que algo muito frágil se rompeu. Provavelmente não apenas na sociedade brasileira, mas aqui de uma forma particular.
Rompeu-se o sentido da solidariedade, a tolerância e o esforço de compreensão. Talvez tenha se rompido sobretudo a capacidade de se indignar, como resultado da naturalização socialmente construída do ódio, da violência e da agressão. Não importa se em nome da economia, da ideologia ou da fé.
O covarde ataque com bombas molotov ao Porta dos Fundos não é considerado terrorismo. Nem queimar templos de umbanda em nome de Deus.
Ninguém mais lembra quantos indígenas, ambientalistas, pretos e pobres foram mortos neste ano, nem se cobra mais o assassinato de Marielle.
Homossexuais são espancados por manifestar seu amor em público e seus algozes certamente celebram o Natal em família.
Os trabalhadores são escorchados, a fome e os moradores de rua aparecem por todo lado, mas o governo prepara um pacote de socorro aos bancos.
Laranjais e rachadinhas pululam, mas o presidente afirma em mensagem à nação que não há mais corrupção.
Os vínculos da família presidencial com as milícias são cada vez mais expostos, mas a imprensa omite o sobrenome de um tal “Flávio”.
O enésimo ataque às universidades públicas vem na forma de medida provisória publicada entre Natal e Ano Novo.
E nós, atônitos, desinformados ou indiferentes, insistimos em desejar um feliz 2020. Que não será feliz nem melhor que 2019, um ano que demorará muito para terminar.
sobre o autor
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do IAU USP São Carlos.