Há uma obsessão nas cidades em ocupar vazios. Ocupem este lote cheio de mato. Ocupem este edifício abandonado. Encham aquela piscina de água. Preencham aquela empena branca com grafites. Sempre pensando no uso e função voltados ao bicho homem. Desse jeito, quadra a quadra, edifícios se erguem ligeiros sobre os antigos ou sobre os vazios. Envidraçados e refletivos, cheios de luzes, ruídos. As pessoas se encontram e se concentram em poucos metros quadrados, dependuradas em lajes, rindo alto, comendo e discutindo. Há mais guerra do que afeto nestes pavimentados dias.
O vazio possui vantagens que deveriam ser melhor consideradas antes de qualquer intervenção de ocupação. Talvez a mais interessante seja o fato do ‘nada’ ser um campo com infinitas possibilidades de vir-a-ser. O vazio, como na física quântica ou em uma folha em branco, é um campo cheio de potencial criativo. Para ativá-lo, é necessário estabelecer uma relação entre duas partes, no mínimo. O próprio vazio e um observador. Este produz uma grande variedade de utilidades ou futilidades àquele ‘nada’.
A riqueza de diversidade é mais ampla se o vazio for preservado, já que a interação ocorre em um nível imaginativo e intelectual, variando de indivíduo para indivíduo. Uma criança vê em um terreno baldio uma réplica de alguma história animada, e se apropria – em pensamento ou em corpo presente – do lugar para recriar o mundo imaginado, sendo um dos personagens. Em pouco tempo, ela percebe que o terreno acidentado em pequenos aclives é ideal para simular uma aventura aos seus carrinhos e bonecos, em outra escala. Um adulto preocupado em demasia, enxerga os perigos que aquele terreno vazio oferece à criança. Um adolescente mira a possibilidade de um encontro romântico sob uma árvore. Um construtor cria um centro comercial e imagina o lucro que poderia obter no empreendimento. Tudo é possível se há espaço aberto para a geração de múltiplos significados ao lugar.
Qualquer ação de ocupação do espaço livre gera alguma atribuição de função. Isso é fatal para o grau de potencialidades e histórias que o ‘nada’ antes oferecia. Se o pai da criança entendesse o que ela imagina ao brincar no terreno vazio, e decidisse agradá-la construindo um cenário similar ao de seus personagens – um parquinho –, as demais possibilidades estariam mortas para a criança, para o adolescente e para o empreendedor citados acima.
O vazio também oferece o contraste entre a não função e os objetos funcionais a sua volta. Um edifício em ruínas e sem uso estabelece de imediato a vitalidade de seus vizinhos, objetos asseados, iluminados e bem frequentados.
Ainda mais interessante é o fato do vazio carregar em si outro compasso de tempo. Sem a intervenção humana, a natureza age em velocidade mais lenta. A vegetação cresce devagar, o solo se erode com as chuvas, ruínas se decompõem lentamente, estabelecendo a diversidade de tempos que correm em velocidades diferentes ao longo do tecido urbano.
Há implicações do vazio quando um terreno nunca foi ocupado, ou em lotes com construções abandonadas. Enquanto o primeiro evoca um testemunho que olha diretamente para o passado mais distante da ocupação urbana, uma porção da terra intocada e virgem, as ruínas representam um momento histórico bem definido em que, naquele local algo ruim ocorreu, uma ruptura de várias dimensões, e desde então o local nunca pode ser habilitado novamente. Uma marca no espaço e no tempo.
O espaço em branco das cidades é tão necessário quando seus preenchimentos. É o amortecimento entre paredes e gente em demasia. Existe beleza num terreno cheio de mato. Não se trata apenas da ausência temporária da civilização. São outros seres e outros mundos em bolhas de diversas escalas de realidades. Flores vagabundas visitadas por borboletas ocasionais. Vento alisando o matagal. Refúgio de pardais e outros pássaros. Merecido descanso para o olhar aborrecido de tanto vidro e concreto mal-ajambrado. Se na música o silêncio bem colocado compõe boas sinfonias, e na poesia o espaço em branco é tão necessário quanto o escrito, por que enfiar construção ou gente em todos os suspiros da cidade?
nota
Texto publicado no Blog do Zé Beto e revisado para a revista Drops do portal Vitruvius.
sobre o autor
Yuri Vasconcelos Silva é arquiteto (UFPR, 2002), mestre em engenharia civil (UFPR, 2017). Foi arquiteto sócio na Willer Arquitetos Associados, Curitiba PR (1999-2012). Arquiteto fundador da YVA Arquitetura, Curitiba PR (2012-atual).