Algumas estruturas narrativas se comportam como as lendas e mitos: passam por um processo contínuo de aprimoramento até alcançar uma forma perfeita, que contempla as vicissitudes da vida, as inversões de situações, a revelação do problema e a solução dos conflitos (1). Guardam em si a ambiguidade presente na noção de “síntese”: reúne numa só versão múltiplas histórias originalmente autônomas, mas também significa o processo de compor um fármaco – remédio ou veneno (2) – a partir de elementos primitivos inertes. Na primeira acepção, é o resultado final do processamento; na segunda, é o início de um tratamento, que pode resultar na constatação resignada de uma moral da história ou no ativismo transformador. A história do navio que afunda – por bater em um iceberg, por ser atingido por um torpedo, por uma explosão interna... – sempre evoca o capitão abnegado, cioso de seu papel de liderança, que se desdobra no atendimento das necessidades da tripulação e dos passageiros; evoca também a figura do individualista, que usa de todos estratagemas, ardis e astúcias para sobreviver. A atual pandemia que assola o planeta tem no Brasil um desdobramento peculiar, que aponta para um possível rearranjo da narrativa síntese. O capitão do navio se porta como o passageiro individualista, oscilando entre estágios mentais, se apresentando ora errático, ora calculista, ao sabor das ondas noticiosas e políticas. Pensa apenas em se safar das contingências impostas pelo destino, dá vazão a uma doentia certeza de ser o escolhido, uma psicopatia tornada pública pelo choro disfarçado, pelo grito nervoso, pelo olhar desvairado. O que não se sabe ainda, no meio do enredo em desenvolvimento, é o que virá depois – o naufrágio ou a troca do comando. Como não se revelou até agora um herói de plantão para assumir a nau, resta finais de história trágicos, com a morte da maioria, ou um comando novo, rígido e autoritário, da guarda pretoriana que observa silenciosa, talvez sequiosa, o desdobramento da trama. Ou então, esse filme aguarda melhor roteirista. Enquanto o navio singra o mar revolto sem comando, pode-se (des)aprender com a experiência em curso. Aqui se lança seis nódulos temáticos, que têm sido desemanharados por intelectuais diversos, e apontam para oportunidades que podem – ou não – ser agarradas.
O primeiro tema é a ineficácia do capitalismo em lidar com uma tragédia de tais proporções. Nos países mais atingidos pelo Coronavírus se sucedem casos de solidariedade social e responsabilidade pública, com a submissão de interesses individuais em prol dos coletivos. No atendimento médico dos acometidos pelo Convid-19 têm prevalecido a intervenção estatal e a solidariedade social; na prevenção, se impõe a estratégia de erradicação proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e a pesquisa por vacina e remédios lideradas de forma colaborativa por universidades e centros de pesquisa. Não se ouve – nem mesmo nos telejornais das grandes redes de televisão, que têm promovido o neoliberalismo radical nos anos recentes – que a liberdade de mercado, a competição internacional ou o mérito individual vão dar conta do recado. Dá vertigem pensar o quanto a estrutura socioeconômica atual é inadequada para uma situação que vem se repetindo amiúde, cada vez com menor intervalo. É possível aprender que, caso a humanidade queira ter um futuro feliz, ou mesmo um futuro qualquer, devemos imaginar alternativas para o capitalismo. Ou não.
O segundo tema, a universidade pública, deriva do primeiro. Nesses últimos quinze meses de governo de ultradireita temos sido sobressaltados constantemente pelas medidas estapafúrdias do governo central a respeito das universidades em geral, a pública em especial. Desprestigiar a universidade parece ter base em uma visão ideológica extremista, que enxerga uma relação umbilical entre o ambiente acadêmico e a visão de mundo esquerdista – designada como “esquerdopatia”, “marxismo cultural”, “hegemonia cultural gramsciana” e outras tolices equivalentes, tudo isso dito por gente que nunca abriu um livro de Karl Marx ou de Antonio Gramsci. Alguns, mais honestos em sua ignorância, preferem simplesmente achincalhar e difamar a universidade pública, como é o caso do ministro da (des)educação, que dentre seus feitos notáveis cortou bolsas e recursos para evitar plantio de maconha e produção de LSD nos gramados e laboratórios dos campi universitários (3). A piada grotesca com cargo de ministro demonstra, com sua simples presença caricata, a completa falta de respeito pelo universo acadêmico e pelas pesquisas em curso levado a cabo por professores e alunos da pós-graduação, um cotidiano marcado pelo esforço, determinação e perseverança. Agora, na hora do vamos ver, quem faz a diferença são as áreas de saúde das universidades e laboratórios públicos, que permitem um mínimo de racionalidade do conhecimento científico para dar suporte às decisões nos âmbitos do combate, prevenção e mitigação dos malefícios do Coronavírus. É possível aprender que, caso nós brasileiros desejemos ter um futuro feliz, devemos dar à universidade pública, aos centros de pesquisa públicos, e às universidades sérias em geral, reconhecimento e recursos. Ou não.
O terceiro tema – as políticas pífias para as cidades brasileiras, para as grandes metrópoles em especial, e para as periferias destas ainda mais especialmente – será escancarado pela crise atual, pois a principal estratégia defendida pela OMS para diminuir o impacto do Coronavírus – o distanciamento social – é praticamente inviável nas condições de aglomeração e falta de infraestrutura básica vividas pelas favelas e bairros pobres. Abandonados pelas políticas públicas, esse contingente da população que se conta aos milhões está largado à própria sorte, e a dimensão do contágio e dos malefícios de sua evolução vão depender exclusivamente do grau de auto-organização das comunidades (4). Como de lá saem todo santo dia parte grande dos trabalhadores que cumprem trabalhos vitais para a manutenção mínima da ordem urbana – lixeiros, motoboys, motoristas, cozinheiros, enfermeiros, policiais etc. – não é alarmismo histérico imaginar que a epidemia trazida do exterior pelos turistas dos bairros abastados tenha neles o vetor de uma disseminação mais extensa e generalizada. O atual ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, o astronauta no mundo da lua, redirecionou os recursos de sua pasta para as áreas que considera prioritárias, deixando fora as ciências humanas, inclusive arquitetura e urbanismo (5). À presença de historiadores na grande mídia, estabelecendo conexões entre a pandemia atual e assemelhadas do passado, se seguiu a manipulação dessas informações por cientistas da área médica, demonstrando a importância vital do conhecimento histórico e sociológico sobre a peste negra, peste bubônica, febre espanhola, epidemia de ebola e tantas outras ocorrências de malignidades transmitidas de homem para homem. E o mesmo estará ocorrendo em breve, quando a pandemia assolar os estabelecimentos humanos paupérrimos, com televisões e jornais abrindo espaço para arquitetos e urbanistas explicarem a relação entre condições de habitabilidade e mortandade (e aqui se abre espaço para o narrador oculto dizer: “torço para estar equivocado”). É possível aprender que, caso nós brasileiros desejemos ter uma cidade mais justa e saudável para todos, devemos priorizar as políticas públicas e as pesquisas universitárias voltadas para as comunidades pobres. Ou não.
O âmbito da linguagem é nosso quarto tema, considerando sua relevância no embate político local. Que a proliferação das fake news tenha sido a resposta padrão do negacionismo não é nenhuma novidade, pois ela tem sido regra nas disputas ideológicas em temas igualmente relevantes, caso do aquecimento global. No mundo da pós-verdade, fica evidente a eficácia do discurso mentiroso, ancorado em achismos pessoais ou convicções exóticas de grupos específicos, não em uma base científica ou em uma moralidade depurada pelo tempo. Não se trata exatamente de uma novidade, já que são muitos os exemplos históricos que exemplificam a sujeição da verdade e da bondade pela ignomínia ideológica. Ainda não foi soterrada pelo tempo a experiência nazista, que defendia o arianismo e mecanismos eugenistas baseados em uma pseudociência derivada do darwinismo social do século 19. A novidade está na amplitude do fenômeno, sua globalização promovida pelos meios de comunicação digitais, em especial pelas redes sociais, onde falta qualquer triagem no que é divulgado. O termo “viralizar” serve de alerta o quanto é doentio o desfibramento da linguagem, onde o argumento racional, ou ético, se dobra diante da acusação inverídica, da difamação espúria, da maledicência apócrifa. Fica ainda mais alarmante quando um dos principais focos de disseminação de fake news no Brasil atual é o chamado “gabinete do ódio”, uma espécie de governo paralelo incentivado pelo próprio presidente da República e tolerado por toda a estrutura do poder executivo que o cerca (6). É possível aprender que, caso a humanidade queira ter um futuro feliz, devemos restituir à linguagem sua dimensão utópica de construir a bondade, a generosidade e o amor como atributos da espécie. Ou não.
Ainda no âmbito local, temos um quinto tema com dimensões explosivas: a proliferação nas últimas décadas das religiões evangélicas que usam a ignorância como estratégia de evangelização. Trata-se de assunto delicado e seria prudente, e necessário, afastar de antemão qualquer crítica ontológica à religiosidade, disposição anímica do homem em espraiar seu espírito em busca de explicações sobre o sentido da vida e buscar conforto psíquico diante da inevitabilidade da morte. É fundamental afirmar também que o que mais falta à maioria das sociedades atuais – com a exceção de algumas comunidades indígenas e poucos enclaves pontuais (7) – é uma verdadeira consciência do Sagrado. O que se coloca aqui é a instrumentalização política promovidas por algumas instituições religiosas, que têm à frente líderes oportunistas. Os famosos “kit gay” e “mamadeira de piroca”, temas de celebrações religiosas de algumas igrejas (8), seriam piadas engraçadas não fosse trágico o resultado da última eleição presidencial. Mentiras desse tipo constituem evidente desvio de conduta, que já ocorreu no seio das igreja católica e protestantes mais tradicionais em outros períodos. A propensão de igrejas em se imiscuir com o poder temporal é tão antiga e renitente que as sociedades modernas se propõem anulá-la através de várias estratégias de separação entre Estado e Igreja, estratégias nem sempre vitoriosas, como atesta a frase – uma afronta a agnósticos e ateus – “em Deus nós confiamos” (“In God We Trust”) impressa em cada cédula de dólar. Contudo, é deprimente e vergonhoso quando um presidente da República se ajoelha de forma hipócrita para os registros de celulares, se abraça a líderes evangélicos, um deles prometendo o despropósito de que o jejum e a oração impedirão a contaminação dos fiéis por Coronavírus. É possível aprender que, caso os brasileiros queiram ter um futuro feliz, democrático e saudável, a sociedade precisa estabelecer a religiosidade como espaço individual e coletivo de se entender o Sagrado, sendo a vida seu maior predicado. Ou não.
No sexto e último tema – e, talvez, o mais importante – retoma-se o âmbito universal, situação irrecorrível vivida por todos os habitantes do planeta durante a pandemia. Nasce a dúvida, certeza para muitos (alguns deles há muito tempo), que somos demais, além do que cabe na Terra. É possível que o desejo ancestral contido nas sagradas escrituras e expresso na forma de promessa divina – “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sob a terra” (9) – tenha ultrapassado o limite do tolerável, que a Terra não seja a mãe de generosidade ilimitada, que a degradação do meio ambiente natural esteja no limite do ponto sem volta. A banalização da vida promovida pelo atual estágio da humanidade – consumo irrefreável, turismo depredatório, religiões dessacralizadas, genocídio do Outro, exploração extrema do trabalho, rebaixamento da arte, desrespeito à ciência, vulgarização da linguagem, supressão de princípios éticos e morais – reforça o diagnóstico: o homem não faz bem à vida na terra. Contudo, as imagens de satélite dos dias atuais mostram a diminuição impressionante da poluição na província de Hubei na China, no norte da Itália e em Nova York, costa oeste dos Estados Unidos (10), onde as atividades econômicas e a própria vida urbana paralisaram devido à pandemia. O Coronavírus como fármaco, que é nosso veneno, mas pode ser nosso remédio. Assim, é possível aprender que, caso a humanidade queira ter um futuro, qualquer futuro, as sociedades precisam modificar de forma radical seus modos de vida, fazer brotar no íntimo das comunidades a consciência adormecida do Sagrado, do que deve ser protegido, do que deve ser legado. Ou não.
notas
NA – O presente texto foi originalmente publicado na página Facebook do autor, dentro do álbum “Crônica de sedentário, ex-crônica de andarilho”, texto 109, e adaptado para publicação na revista Drops do portal Vitruvius.
1
Aqui está presente, de forma adaptada, a ideia aristotélica de aprimoramento da obra de arte através do tempo. ARISTÓTELES. Poética. In Aristóteles – volume II. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1987.
2
Ambiguidade do fármaco como veneno e remédio foi desenvolvido, com outras finalidades argumentativas, mas de forma brilhante, no seguinte livro: WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.
3
BERMÚDEZ, Ana Carla. Sem provas, Weintraub diz que federais têm plantações extensivas de maconha. Uol, São Paulo, 22 nov. 2019 <https://bit.ly/2y0hMxC>.
4
Com outros pontos de vista, e com um registro pouco mais otimista do que o meu, Ermínia Maricato trata do mesmo tema. Ver: MARICATO, Ermínia. A Coronacrise e as emergências nas cidades. BrCidades/GGN, São Paulo, 03 abr. 2020 <https://bit.ly/2RiSQbE>.
5
A Portaria 1122/2020 do MCTIC, que estabelece prioridades para pesquisas de desenvolvimento de tecnologias e inovações para o período 2020 a 2023, não faz menção às ciências humanas, puras ou aplicadas, assim como não menciona “arquitetura” ou “urbanismo”. Há uma menção às “cidades inteligentes e sustentáveis”, conceito marcado pelo primeiromundismo, deixando de fora a cidade real, desinteligente e insustentável. Ver: MCTIC. Portaria MCTIC nº 1.122. Brasília, Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, 19 mar. 2020 <https://bit.ly/2V4wrjq>. Uma semana depois da promulgação da portaria, a Academia Brasileira de Ciências divulgou uma manifestação, encabeçada por seu presidente e subscrita por cerca de 70 entidades científicas brasileiras, alertando que a “ABC, a SBPC, as sociedades científicas que subscrevem a carta e os INCTs que apoiam a manifestação solicitam que as prioridades, como colocadas na Portaria, sejam rediscutidas com a comunidade científica, especialmente em relação ao apoio à ciência básica, o que inclui também as ciências humanas e sociais”. DAVIDOVICH, Luiz; et. al. Manifestação das entidades científicas sobre a portaria 1122/2020. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Ciências, 27 mar. 2020 <https://bit.ly/34jTE5o>.
6
“Defensores da pauta de costumes e de uma estratégia de guerra, integrantes desse grupo trabalham no terceiro andar do Planalto, a poucos metros de Bolsonaro. Produzem ‘artilharia pesada’ para mídias digitais, além de conteúdos para pronunciamentos do presidente, como o da noite desta terça-feira, 24, quando ele criticou o fechamento de escolas para combater a pandemia e o confinamento em massa. Seus alvos preferenciais são o Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF), governadores e a imprensa”. ROSA, Vera. ‘Gabinete do ódio’ vira o Conselho da República de Bolsonaro. Estadão, São Paulo, 25 mar. 2020 <https://bit.ly/3bUrVus>.
7
Ver: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 2019. Ver resenha sobre o livro: GUERRA, Abilio. Quando o mundo acabar vou estar flutuando com um paraquedas colorido. A contemporânea cosmovisão ameríndia de Ailton Krenak. Resenhas Online, ano 18, n. 211.04, São Paulo, Vitruvius, jul. 2019 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.211/7419>.
8
MACHADO, Leandro; FRANCO, Luiza. Eleições 2018: os valores e ‘boatos’ que conduzem evangélicos a Bolsonaro. São Paulo, BBC News Brasil, 23 out. 2018 <https://bbc.in/2V8oBoZ>.
9
Gênesis, 11. In A Bíblia de Jerusalém. 9a edição revista. São Paulo, Edições Paulinas, 1985, p. 31-32.
10
BRAUN, Julia. Quarentenas e restrições reduzem poluição na Itália, China e em NY. Veja, São Paulo, 23 mar. 2020 <https://bit.ly/2wl1HlO>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora. É coautor de Rino Levi – arquitetura e cidade (com Renato Anelli e Nelson Kon, 2001), e autor de O primitivismo em Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Raul Bopp (2010) e Arquitetura e natureza (2017).