Se quisermos sair mais humanizados e menos egoístas e doentes dessa crise, eis muitas oportunidades que afloram.
Reconhecer o número de pessoas informais e invisíveis ao Estado – e a tantos outros ditos cidadãos – trazendo o projeto renda mínima, por exemplo. Passada a quarentena, essas pessoas vão voltar a ter que trabalhar de dia para, se der sorte, ter o que comer à noite, sem segurança alguma, tendo que escolher, como agora, entre a doença e a fome? Dar abrigo aos moradores de rua e sem teto. Mas afinal, esses projetos serão provisórios e teremos o cinismo de enxotá-los assim que o pico da curva passe? Escancara-se a urgência de ocupar e reformar prédios vazios da cidade e dos projetos de habitação social. Mas também de pensar no valor absurdo dos aluguéis em São Paulo, motor da especulação imobiliária, que sufoca a todos e que faz com que uma cama em um quarto coletivo em pensões no centro da cidade chegue a custar trezentos reais.
Lavar as mãos com água e sabão, a recomendação da Organização Mundial da Saúde – OMS que parece mais simples, traz à tona a desigualdade e marginalidade que as nossas cidades perpetuam. Enquanto na Rocinha, no Rio de Janeiro, o serviço de abastecimento tem o descalabro de deixar pessoas com água encanada sem abastecimento por quatro dias – enquanto a cidade do cartão postal se aliena a tal problema –, há muitos que não têm sequer caixa d’água, sequer encanamento, mas pasmem, às vezes têm casas: debaixo dos viadutos, das pontes, à margem das rodovias. São pessoas que insistem em construir um lar, enquanto a cidade tenta a todo custo exterminá-los. Nem só os moradores de rua não têm acesso à água. O buraco é muito mais embaixo. Sem contar o problema de que ainda que chegue a água, às vezes falta o sabão. De repente, com o coronavírus a elite e a classe média ensimesmadas percebem que sua saúde depende de que todos lavem as mãos, dessa vez literalmente, apesar de ser uma ironia oportuna. Será que é preciso ir ao Ibirapuera para se ter bebedores e banheiros públicos – agora nem públicos mais?
Renda mínima, habitação e acesso à água, são questões urgentes desde que o ser humano é humano. Será preciso um vírus para que nos lembremos disso? Será preciso uma pandemia para se ter coragem de lutar pela dignidade alheia nas nossas cidades, pois essa também é a nossa dignidade? A luta é urgente, muito além da curva do coronavírus. Vamos fazer o exercício de enxergar e falar sobre isso. A solidariedade de hoje, não vai resolver o problema de amanhã, é hora de pegar essas sementes de projetos e implantá-los nas nossas cidades.
sobre a autora
Berta de Oliveira Melo é arquiteta, urbanista e paisagista, com mestrado pela FAU USP.