Há algo de muito grave quando deixa de ser o centro do noticiário que a pandemia atingiu, na sexta-feira, cinquenta mil infectados e quase quatro mil mortos no Brasil.
Quando, por dois dias seguidos, tivemos mais mortes que no criminoso desastre de Brumadinho. Quando até o novo ministro da saúde, colocado para minimizar os dados da crise, afirma que os números reais são pelo menos cinco vezes maiores.
Quando a cidade mais rica do mundo não consegue enterrar seus mortos. Quando temos três milhões de infectados e duzentos mil mortos no planeta e imbecis irrecuperáveis continuam falando em gripezinha.
Quando precisamos construir as formas de enfrentar o desastre com um mínimo de humanidade, justiça e preocupação com os mais expostos, estamos assistindo atônitos à putrefação de um corpo social chamado Brasil, atacado nos últimos anos por outras cepas, extremamente agressivas e destrutivas, de vírus.
Antes do Covid-19, o Brasil foi atacado pelos vírus do autoritarismo, da desumanidade, da corrupção desavergonhada, do aparelhamento do estado, da hipocrisia e, talvez os piores, da cegueira ou da indiferença.
Nesta sexta feira, assistimos atônitos o (ex-)ministro da justiça fazer acusações gravíssimas ao presidente. Poucas horas mais tarde, vimos exatamente o contrário e, logo depois, a mídia e as redes sociais divididas na condenação ou na torcida por um ou por outro.
Mas foram muito poucos a perceber que tanto o ministro como o presidente confessaram, voluntária e publicamente, ter cometido crimes graves contra a democracia e a ordem social.
O ex-ministro da justiça, que fez fama como inimigo da corrupção, confessou que pediu como contrapartida a sua entrada no (des)governo, uma “pensão” extraoficial para sua família. De onde ele imaginou que poderia sair esse dinheiro? Dos cofres públicos, das rachadinhas ou das milícias?
E o presidente confessou, também espontaneamente, que acha normal e quer, sim, interferir politicamente na polícia federal e ter acesso a informações que, por lei, são sigilosas.
Por que agora, no meio da pandemia? Porque isso se tornou urgente quando os dois processos abertos pelo Supremo – para saber quem comanda a produção de fake news e quem financia e organiza as manifestações pela volta da ditadura – parecem chegar perigosamente próximo da famiglia presidencial.
De qual vírus devemos ter mais medo?
sobre o autor
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do IAU USP São Carlos.