Se a perspectiva mais radical e utópica do projeto moderno, nas artes visuais, design, arquitetura e urbanismo, foi uma relação de indistinção absoluta entre arte e vida, a partir do desenho de um espaço universal e infinitamente extensível, poderíamos dizer que a construção de Brasília representa a materialização mais monumental e emblemática do próprio projeto moderno.
Brasília é a imagem de uma modernidade nacional em seu estado mais maduro. A modernidade figurativa e literal das décadas de 1930 e 1940 (perceptível nas personagens femininas nativas de Di Cavalcanti e nas curvas ainda intensamente sinuosas de Oscar Niemeyer ou nas sinfonias de Villa-Lobos) passa por um processo de síntese de sua própria linguagem a partir da segunda metade da década seguinte (anos 1950). O temário e a invenção quase ficcional de um Brasil profundo, primitivo, e a coreografia ao mesmo tempo dinâmica e cambaleante das curvas de sua nova arquitetura dá lugar a uma visualidade mais crua, lastreada pela abstração, mais precisamente a abstração construtiva.
A integração das artes, defendida por Lucio Costa, em Brasília, ganha contornos de síntese, pois seus elementos não são "integrados" no sentido de serem retirados de sua própria autonomia e recombinados, ao contrário, nascem juntos em uma preexistência paradoxalmente ainda sem história.
Agora, as formas solenes, monumentais e silenciosas de Niemeyer, resultam do contraste radical entre luz e sombra, cheio e vazio, curva e reta, transparência e opacidade. A construção de Brasília convoca a intelectualidade brasileira a refletir sobre a relação entre modernidade e tradição a partir de uma chave não figurativa, sendo assim, de teor de comunicabilidade menos literal.
A autenticidade da modernidade, aqui, não se constitui a partir do reconhecimento das virtudes e da beleza extraídas da austeridade de nosso passado colonial, mas é consequência de um gesto capaz de vislumbrar um cotidiano uniforme e integral a partir da construção de formas e espaços que sejam, ao mesmo tempo, a história e a utopia.
nota
NE – texto publicado originalmente na página Facebook do autor, na série “Pílula”, n. 11.
sobre o autor
Rodrigo Queiroz é arquiteto (FAU Mackenzie, 1998), licenciado em Artes (Febasp, 2001), mestre (ECA USP, 2003), doutor (FAU USP, 2007) e professor livre-docente do Departamento de Projeto da FAU USP. Curador de exposições de arquitetura moderna, tais como “Ibirapuera: modernidades sobrepostas” (Oca, 2014/2015), “Le Corbusier, América do Sul, 1929” (CEUMA, 2012), “Brasília: an utopia come true”, (Trienal de Milão, 2010) e “Coleção Niemeyer” (MAC USP, 2007/2008).