Na sexta-feira, 1º de maio, recebi a notícia do falecimento do meu querido amigo Carles Martí Arís (1949-2020), a quem muitos também conheciam aqui no Brasil. Apesar da tristeza, é obrigação relembrá-lo e tentar explicar quem foi para quem não o conhecia. Ao longo de uma carreira de mais de cinquenta anos, Carles desenvolveu sua atividade em todas as frentes possíveis: estudante, pesquisador, editor, pensador, crítico, escritor, construtor e promotor cultural.
Apesar de sofrer do Mal de Parkinson há pelo menos dez anos e de estar internado em uma clínica geriátrica há seis, acabou sendo contaminado pelo coronavírus e nos deixou. Que descanse em paz; uma frase muito apropriada a quem há tanto tempo lutava contra uma enfermidade que o havia incapacitado severamente.
Trata-se de uma perda enorme. Carles era uma unanimidade positiva, admirado por muitos, e possuía uma rara capacidade de conviver bem com todos, sem ficar preso a nenhum grupo específico. Era uma pessoa discreta, generosa, de extraordinário bom humor, com uma enorme capacidade de fazer amigos e conectar os amigos que ia fazendo pelo mundo.
Extremamente lúcido e organizado mentalmente, foi fundamental na organização dos planos de trabalho dos cursos em que esteve envolvido na ETSAB UPC. E o fazia sem antagonizar ninguém, confiando na clareza das suas ideias. Curiosamente, nunca chegou a ser professor catedrático, mas era tão respeitado como se fosse.
Alguém o definiu como pouco conhecido, mas muito reconhecido. Sim, era muito apreciado por seus colegas, estudantes e orientandos. Peço perdão pelo tom autobiográfico, mas tive a oportunidade de comprovar isso pessoalmente pois, a partir de 1996, Carles me acolheu, me hospedou, me apresentou a muitas pessoas, abriu portas, me fez conhecer melhor Barcelona e me iluminou com a sua lucidez e conhecimento.
Sua produção textual foi das coisas importantes que aconteceram na segunda metade do século 20, tendo influenciado a muita gente, entre os quais me encontro. Publicou três livros de excepcional qualidade: Las variaciones de la identidad, extraído da sua tese doutoral dirigida por Giorgio Grassi, ainda hoje o melhor texto que há sobre o conceito de tipo em arquitetura, visto desde o ponto de vista do projeto (1); Silencios elocuentes (2); e La cimbra e el arco, pela Fundación Arquia (3), reunindo alguns dos seus textos mais importantes.
Escrevia de modo claro e objetivo, porque seu pensamento era assim, o que não eliminava a ocasional licença poética. Nos seus textos e palestras não se encontra nada daquilo que é hábito nos dias de hoje: argumentações mirabolantes e confusas, que buscam demonstrar erudição e profundidade quando apenas encobrem a confusão mental do palestrante/escritor.
Entre suas muitas iniciativas culturais, pode-se destacar o concurso bienal de teses doutorais organizado pela Fundación Arquia, as coleções Arquia/tesis e La cimbra, publicadas pela mesma fundação. Anteriormente havia impulsionado uma coleção de textos essenciais editados por Ediciones del Serbal, assim como foi um dos principais criadores e editores das revistas 2C – Construcción de la Ciudad, que durou de 1972 a 1985 e introduziu principalmente a tendenza italiana aos leitores espanhóis, e DPA, revista do Departamento de Projetos Arquitetônicos da ETSAB, da qual cheguei a fazer parte do corpo editorial. Por iniciativa dele, é claro.
Além disso se manteve ativo como arquiteto, em parceria com Antonio Armesto, tendo uma obra caracterizada pela austeridade, abstração, diálogo contínuo com a cidade e qualidade construtiva elevada.
Devido à enfermidade que o abateu foi obrigado a aposentar-se precocemente de todas as suas atividades acadêmicas e profissionais. No entanto, em 2014 lhe foi concedido o título honorífico de Magister Honoris Causa, isto é, como mestre de todos os que de algum modo se relacionaram com ele. Felizmente foi possível prestar-lhe essa merecida homenagem em vida.
Mais um dos bons que nos deixa.
notas
NE - O nome do arquiteto em catalão é Carles, mas nos livros publicados em espanhol e italiano seu nome é grafado como Carlos.
1
Publicado originalmente em italiano: MARTÍ ARÍS, Carlos. Le variazioni dell’identità. Il tipo in architettura. Milão, CLUP, Politecnico di Milano, 1991. Primeira edição em espanhol: MARTÍ ARÍS, Carlos. Las variaciones de la identidad. Ensayo sobre el tipo en arquitectura. Barcelona, Ediciones del Serbal, 1993. Reeditado pela Fundación Arquia em 2014.
2
MARTÍ ARÍS, Carlos. Silencios elocuentes. Barcelona, Edicions UPC, 1999. O livro será reeditado em breve, como parte da coleção Poliédrica da UPC da Universidad Politécnica de Catalunya.
3
MARTÍ ARÍS, Carlos. La cimbra y el arco. Barcelona, Fundación Caja de Arquitectos, 2005.
sobre o autor
Edson da Cunha Mahfuz é arquiteto e professor de projetos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRS, Porto Alegre.