Penso que o momento exige análises, dúvidas, pesquisas, coordenação das forças progressistas e democráticas. Teses dogmáticas cuja base é apenas o lado factual (fatos importam, mas não bastam) em vez de ajudarem a reflexão, a paralisam. Por exemplo: “divulgar o vídeo serviu apenas para fazer propaganda de Bolsonaro”. Será? Quais bases empíricas são usadas para tal enunciado?
Caldo de galinha e paciência, além de pesquisa cuidadosa nunca fazem mal a ninguém. Oráculos infalíveis levaram forças democráticas ao fracasso. Que tal reler “O 18 Brumário de Louis Bonaparte”? (1) E recolher o maior número possível de informações antes de falar ex cathedra? Mesmo o Papa não tem infalibilidade em assuntos alheios à fé. Por tal motivo foi criada a Academia de Ciências do Vaticano.
Perdoem, mas o instante não é para choros, risadas, solenes proclamações de verdades pessoais, certezas não demonstradas. O momento é de crise e, nas crises, é preciso ter o juízo frio, o peito forte, as mãos duras. Não é a hora do “eu já disse”.
Sempre que passamos por situações assim recordo a fala de Lenine aos que desejavam dar lições para os revolucionários em instantes de fracasso. Ele cita Marx e sua posição diante dos insurgentes da Comuna. “Marx não os corrigiu com a régua na mão, como professor ranzinza, mas os incentivou mesmo tendo criticado suas posições durante os eventos” (2). Régua na mão. Intelectuais tem méritos, mas também defeitos. Um dos piores é a certeza de que a verdade do planeta passa pelos seus dedos quando digitam. E apenas pelos seus dedos...
Desculpem, mas não me contive diante de tantas Cassandras que só enxergam onipotência no lado governante. Cabe-nos a tarefa de encontrar os elos fracos da cadeia fascista. E depois nos unir para quebrar os mesmos elos. Desistir tão rápido é confortável. Sempre será possível dizer mais tarde: “a culpa foi de X ou de Y, eu sempre estive certo, não me ouviram”. É um modo de manter as mãos limpas, como os kantianos. Mas sempre é correto chamar a ajuda de Péguy:
“O kantismo tem as mãos puras, mas não tem mãos. E nós, com nossas mãos cheias de calos, cheia de tortuosidades, nossas mãos pecadoras, temos às vezes as mãos cheias” (3).
notas
NE – Texto publicado originalmente na página Facebook do autor e reproduzido no portal Vitruvius com sua autorização.
1
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Coleção Os Pensadores, 2a edição. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 329-404.
2
Trecho citado de memória e presente em algum de seus textos nas Oeuvres Complètes de Lenine. Um trecho (inicial) de O Estado e a Revolução traz a tese citada por mim, em redação diversa, onde o “Plekhanov pedante” substitui o “professor e régua”. A passagem completa é a seguinte: “On sait que, quelques mois avant la Commune, au cours de l'automne 1870, Marx avait adressé une mise en garde aux ouvriers parisiens, s'attachant à leur démontrer que toute tentative de renverser le gouvernement serait une sottise inspirée par le désespoir. Mais lorsque, en mars 1871, la bataille décisive fut imposée aux ouvriers et que, ceux-ci l'ayant acceptée, l'insurrection devint un fait, Marx, en dépit des conditions défavorables, salua avec le plus vif enthousiasme la révolution prolétarienne. Il ne s'entêta point à condamner par pédantisme un mouvement, comme le fit le tristement célèbre renégat russe du marxisme, Plékhanov, dont les écrits de novembre 1905 constituaient un encouragement à la lutte des ouvriers et des paysans, mais qui, après décembre 1905, clamait avec les libéraux: ‘II ne fallait pas prendre les armes’. Marx ne se contenta d'ailleurs pas d'admirer l'héroïsme des communards ‘montant à l'assaut du ciel’, selon son expression. Dans le mouvement révolutionnaire des masses, bien que celui-ci n'eût pas atteint son but, il voyait une expérience historique d'une portée immense, un certain pas en avant de la révolution prolétarienne universelle, un pas réel bien plus important que des centaines de programmes et de raisonnements. Analyser cette expérience, y puiser des leçons de tactique, s'en servir pour passer au crible sa théorie: telle est la tâche que Marx se fixa. La seule ‘correction’ que Marx ait jugé nécessaire d'apporter au Manifeste communiste, il la fit en s'inspirant de l'expérience révolutionnaire des communards parisiens. La dernière préface à une nouvelle édition allemande du Manifeste communiste, signée de ses deux auteurs, est datée du 24 juin 1872. Karl Marx et Friedrich Engels y déclarent que le programme du Manifeste communiste ‘est aujourd'hui vieilli sur certains points’. ‘La Commune, notamment, a démontré, poursuivent-ils, que la ‘classe ouvrière ne peut pas se contenter de prendre la machine de l'Etat toute prête et de la faire fonctionner pour son propre compte’.” LÉNINE, Vladimir. L'Etat et la Revolution, Chapitre III: L'Experience de la Commune de Paris (1871). Analyse de Marx 1. En quoi la tentative des communards est-elle heroique? <https://www.marxists.org/francais/lenin/works/1917/08/er3.htm>.
3
O trecho completo de Charles Péguy em Oeuvre en Prose: “Le kantisme a les mains pures, mais il n’a pas de mains. Et nous nos mains calleuses, nos mains noueuses, nos mains pécheresses nous avons quelquefois les mains pleines. – Agis, dit Fouillée, comme si tu étais législateur en même temps que sujet dans la république des volontés libres et raisonnables. C’était une fois un fonctionnaire qui a eu du génie, du plus grand. Mais il était fonctionnaire,une fois fonctionnaire ; il était célibataire, deux fois fonctionnaire ; il était professeur, trois fois fonctionnaire ; il était professeur de philosophie, quatre fois fonctionnaire; il était fonctionnaire prussien, cinq et septante fois fonctionnaire. Il n’a pu avoir qu’un (très grand) génie de fonctionnaire. (Et de célibataire). Hélas législateur en même temps que sujet. Hélas la république des volontés libres et raisonnables. – Agis de telle sorte, continue Fouillée, agis de telle sorte que la raison de ton action puisse être érigée en une loi universelle. Agis de telle sorte que l’action de Fouillée puisse être érigée en une loi universelle”. PÉGUY, Charles. Œuvres Complètes de Charles Péguy, 1873-1914 – Œuvres de Prose (volume 4). Paris, Éditions de la Nouvelle Revue Française, 1916, p. 496.
sobre o autor
Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles Brasil, Igreja contra Estado (Editora Kayrós, 1979), Conservadorismo romântico (Editora da Unesp), Silêncio e ruído, a sátira e Denis Diderot (Editora da Unicamp), Razão de Estado e outros estados da razão (Editora Perspectiva).