Não resta dúvida de que a epidemia de Covid-19 deixará marcas permanentes no mundo após seu surgimento em 2020. Certamente ela alterará comportamentos demográficos, sociais, culturais, econômicos etc. Tenho a impressão que a inquestionável visão neo ou ultraliberal foi igualmente abalada pela pandemia. Afirmar isso, não significa que sou ingênuo o bastante para imaginar que a abordagem neoliberal será suprimida, embora a crise sanitária tenha sido didática em evidenciar sua selvageria.
Optei por redigir esse texto em primeira pessoa, pois, mais do que uma análise sobre o pacote habitacional espanhol durante a emergência sanitária, trata-se de um testemunho. Depoimento um observador que está na Espanha durante o surto e de uma ainda tênue – mas esperançosa – inflexão em direção a maior amparo social decorrente do flagelo provocado pelo vírus.
Desde já, parece-me importante esclarecer que o leque de medidas emergenciais adotadas não se aplica a toda população. Todos os atos têm a renda como critério básico de seleção dos beneficiados. Sendo mais preciso, o limiar é dado pela vulnerabilidade econômica das famílias.
Em linhas gerais, considera-se vulnerável aquele obrigado a pagar aluguel, financiamento ou hipoteca e que esteja vivenciando situação de desemprego, “Expediente Temporal de Regulación de Empleo (ERTE)”(1) – uma espécie de suspensão e flexibilização momentânea de alguns componentes das leis trabalhistas – ou que tenha sido obrigado a reduzir sua jornada e, logo, seus rendimentos por motivos de assistência. Empresários e, especialmente, autônomos também se beneficiam, desde que comprovadamente tenham perdido somas consideráveis de renda. Estes podem apelar para uma moratória de aluguéis e hipotecas se os prejuízos forem de ao menos 40% nos ganhos da unidade familiar (2) no mês anterior ao pedido.
Mas não apenas. Além destes, classificam-se como vulneráveis as unidades familiares com renda até 3 Iprem (“Indicador Público de Renta de Efectos Múltiples”); em 2020, algo como 1.613,52 € – R$ 8.955,04 (3). A este valor se adiciona 0,1 Iprem (53,78 € – R$297,37) para cada dependente – filhos (4) ou idosos com mais de 65 anos – por unidade familiar. Ou, 0,15 Iprem (80,68 € – R$ 447,77) por filho em unidades monoparentais. Por sua vez, se algum membro da unidade familiar apresentar mais de 33% de alguma deficiência/necessidade especial ou enfermidade que o impeça de realizar qualquer atividade laboral permanentemente, o limite passa a ser 4 Iprem (2.151,36 € – R$ 11.940,05), sem prejuízo aos auxílios por dependentes como delineados anteriormente, ou seja, os suportes são cumulativos. Se o arrendatário sofrer de paralisia cerebral, enfermidade mental ou defasagem intelectual com grau de deficiência igual ou superior a 33%, ou ainda, se o inquilino possuir algum déficit sensorial igual ou superior a 65%, assim como doença grave que o proíba de realizar qualquer atividade laboral, o limite atinge 5 Iprem (2.689.20 € – R$ 14.925,06). Em todos esses casos, observamos que os critérios de vulnerabilidade combinam aspectos econômicos e físicos. Lembrando que o salário mínimo espanhol, em 2020, é de 950 € – R$ 5.272,50 (5), enquanto no Brasil é de R$ 1.045,00. O salário bruto médio espanhol é de 1.695 € –R$ 9.407,25 (6). No Brasil, o rendimento médio per capita gira em torno de R$ 1.438,67 (7). Em síntese, no caso espanhol, a linha de corte da vulnerabilidade econômica é quase dada pelo salário bruto médio, o que não é pouco.
Além disso, o governo espanhol também considera a vulnerabilidade econômica como o resultado do valor gasto com o arrendamento da moradia. Segundo esse critério, se o aluguel ou os valores das parcelas hipotecárias forem iguais ou superiores a 35% da renda líquida total das rendas combinadas de todos os membros da unidade familiar, essa unidade familiar também será considerada vulnerável. Na verdade, o cômputo dos gastos leva em consideração também os consumos de serviços básicos de energia, gás, calefação, água e as despesas com telefonia móvel e fixa.
Até o momento, detalhei apenas os parâmetros de seleção. Por mais circunscritos que fossem, eles abarcam um contingente notável da população espanhola, especialmente famílias monoparentais chefiadas por mulheres, domicílios de idosos, com deficientes físicos, minorias, imigrantes e marginalizados.
Uma das maiores demandas dos movimentos sociais espanhóis ligados à questão da moradia (8), sobretudo após a crise financeira de 2008, dizia respeito ao bloqueio dos despejos. Dessa maneira, suspendem-se por período de seis meses os despejos. O receio de uma multidão de desalojados, justamente num momento de aumento exponencial dos contágios, foi o empurrão necessário para colocar em prática os anseios dos movimentos sociais, embora o ato tenha prazo para acabar.
Outra medida foi a prorrogação automática dos contratos de aluguel residencial. O intuito era evitar mudanças de domicílio no momento da crise sanitária. Uma meta indireta era barrar o processo do que aqui chamarei de “mobilidade residencial descendente”, ou seja, a precarização das condições de moradia decorrente da mudança residencial a que estão expostas, especialmente, as famílias mais vulneráveis (periferização, insalubridade e adensamento excessivo). Temia-se que os inquilinos se vissem forçados a aceitar novos valores de aluguel, mais altos, para evitar o despejo ou para fugir de condições de moradia cada vez mais insalubres.
Em adição, e novamente aplicado às famílias vulneráveis, houve uma redução de 50% no valor dos aluguéis e das hipotecas ou uma moratória de 4 meses quando os imóveis pertenciam ao Estado ou a grandes proprietários, com o compromisso de devolução do montante em até 3 anos. Porém, essa ajuda não é cumulativa. Convencionou-se que grandes proprietários são aquelas pessoas físicas ou jurídicas titulares de 1.500 m² de superfície construída ou mais de dez imóveis urbanos – excluídas garagens e boxes de armazenagem. Especialmente, os “fondos buitres” – “hedge funds” (fundos multimercados) –, bancos e imobiliárias se viram prejudicados pela decisão. A tática nos lembra a importância de estoques habitacionais públicos. Eles asseguram maior agilidade na aplicação das disposições emergenciais, além de capitaneá-las. Prestam-se como reservas, freando especulações imobiliárias ao controlar, direta ou indiretamente, os preços da terra, dos imóveis e dos aluguéis. Por último, trata-se de uma estratégia que nos recorda da, em geral desdenhada – num mundo onde parece que não há mais barreiras para a avidez ultraliberal –, questão da posse do imóvel. Diferentemente do que o senso comum crê, a posse – e não a propriedade – pode salvaguardar os mais vulneráveis com mais eficácia e acurácia.
Os não vulneráveis não ficaram necessariamente desprotegidos. Criou-se uma linha de crédito sem custos, nem juros, através do Instituto de Crédito Oficial (ICO) e assegurada pelo Estado, para o pagamento de até seis meses do aluguel. O prazo para pagá-la é de até seis anos.
Por último, aportou-se um adicional de 100 milhões de euros à dotação original do Plano Estatal de Moradias 2018-2020.
De acordo com o próprio governo, o objetivo do conjunto de medidas era bem pragmático. Preservar a renda e assegurar liquidez no período pós epidemia, garantindo às famílias capital suficiente para outras necessidades básicas de consumo. A importância dada à preservação do modo de produção e acumulação atuais, me faz desconfiar se as medidas emergenciais realmente provocarão mudanças paradigmáticas no enfrentamento da problemática habitacional. Feita essa ressalva, não podemos menosprezar os esforços em garantir segurança habitacional, jurídica, econômica e psicológica aos grupos vulneráveis, vítimas de violência de gênero e sem-tetos num contexto incertezas. Optou-se por uma espécie de “microcrédito” e não necessariamente injeções em grandes empresas ou instituições financeiras.
O governo brasileiro tinha, até o momento, uma certa “vantagem” devido aos diferentes momentos de propagação do surto no globo. Arrisco-me a dizer que perdemos essa janela de oportunidades para nos prepararmos, supondo que algum dia esse fora o objetivo.
notas
1
Espanha, Real Decreto-ley 8/2020, de 17 de marzo, de medidas urgentes extraordinarias para hacer frente al impacto económico y social del Covid-19. Boletín Oficial del Estado: seção I. Disposiciones generales, Madrid, n 73, p 25853-25898, 18 mar. 2020 <www.boe.es/eli/es/rdl/2020/03/17/8>.
2
Compreende-se por unidade familiar “la compuesta por la persona que adeuda la renta arrendaticia, su cónyuge no separado legalmente o pareja de hecho inscrita y los hijos, con independencia de su edad, que residan en la vivienda, incluyendo los vinculados por una relación de tutela, guarda o acogimiento familiar y su cónyuge no separado legalmente o pareja de hecho inscrita, que residan en la vivienda”. Espanha, Real Decreto-ley 11/2020, de 31 de marzo, por el que se adoptan medidas urgentes complementarias en el ámbito social y económico para hacer frente al Covid-19. Boletín Oficial del Estado: seção I. Disposiciones generales, Madrid, n 91, p 27885-27972, 01 abr. 2020 <www.boe.es/eli/es/rdl/2020/03/31/11>.
3
Ptax tomada em 09 de abril de 2020: R$ 5,55.
4
Independentemente da idade.
5
Salário mínimo interprofissional. Dados consolidados de 2019.
6
Fonte: Encuesta de Estructura Salarial – INE.
7
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua.
8
Plataforma de Afectados por la Hipoteca – PAH (https://pahbarcelona.org/es/portada-cast/), por exemplo.
sobre o autor
Tiago Augusto da Cunha é arquiteto e urbanista (IAU USP São Carlos), doutor pelo Programa de Pós-graduação em Demografia da Unicamp, mestre pelo mesmo programa e instituição e Especialista em Geoprocessamento pela UFSCar, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa.