Algum dia de julho entre os anos de 1998 e 2000
Eu e umas outras crianças nos juntamos ao pé da poltrona depois do jantar numa cidade do interior. Meu avô Plínio (1) improvisa uma história divertida sobre um velho sábio chinês que tinha seis filhos e chamava cada um pelo respectivo número: “Filho número 3! (o filho número 3 era o mais alto, sabem?) vai até ali e pega aquele pote na prateleira” e coisas assim. A analogia não é das mais sutis: ele mesmo tem seis filhos, pais das crianças que agora se amontoam aos seus pés e ouvem atentamente.
Provavelmente em algum momento entre 2001 e 2003
Andamos a cavalo, na mesma cidade do interior. Caio do cavalo. Meu avô me tranquiliza: “a primeira vez é a pior. Depois da primeira você perde o medo”.
Fevereiro de 2004
Um trabalho de escola sobre os 450 anos de São Paulo pede para que coletemos histórias de nossos avós sobre um outro tempo da cidade, a fim de organizar um pequeno livro. Meus colegas trazem anedotas bonitas sobre parques, bairros e fábricas. Meu avô faz um relato emocionado do dia do suicídio de Getúlio Vargas. Minha página destoa um pouco do resto do livro.
Setembro de 2006
Minha primeira eleição, para o governo do Estado. Entrevisto meu avô para outro trabalho de escola, dessa vez um jornal. Ele responde cada pergunta do meu roteiro com absoluta seriedade. Pergunto para ele a diferença entre socialismo e comunismo, e a resposta é a definição que via de regra uso até hoje.
Outubro de 2010
Segunda eleição, primeiro voto, dessa vez para presidente. Faço campanha na escola e, no último dia de aula, quando todos usam o uniforme amarelo do colégio, ostento uma camiseta do PSOL. Quase largo a ideia de fazer música para prestar direito na São Francisco e entrar na política (que bom que foi só quase).
13 de junho de 2013
Dia da terça-feira sangrenta, do editorial da Folha, do ato que a gente já sabia que ia ser pesado antes mesmo de começar. Minha avó proíbe meu avô de ir. Ele sai escondido de casa e vai mesmo assim. Recebo a mensagem enquanto pinto um cartaz na concentração da FFLCH: “cara, seu avô tá aqui!!”. Velho doido, eu digo, fazendo muito pouca questão de esconder o orgulho.
16 de setembro de 2013
Vou com meu avô e avó a uma exibição do documentário “O Dia que Durou 21 Anos”, porque ele vai participar de uma conversa com o diretor. Eles me convidaram porque, segundo minha avó, sou "o neto que gosta de política". Nessa época milito no movimento autônomo e estou no auge da convicção anarquista. Meu avô começa a defender a organização partidária como único modo efetivo de participação política. Ninguém contesta. Levanto a mão. Explico razoavelmente, apesar do nervosismo intenso, porque discordo inteiramente de tudo que ele disse. Discutimos pública e um tanto acaloradamente. A volta pra casa é bastante silenciosa.
26 de outubro de 2013
No dia anterior, eu e mais cinquenta e tantos manifestantes, a maioria companheiras e companheiros de Fanfarra do M.A.L., fomos emboscados e detidos durante um ato no centro da cidade e passamos a noite na delegacia. No dia seguinte tem almoço na casa dos meus avós. Eu e meu avô ainda andávamos um pouco estremecidos por causa da discussão do mês anterior. Entro na casa e ele está na sua poltrona. Quando me vê, abre um sorriso imenso, me abraça e diz: “Ô, João, foi preso, é? Não se preocupa, é igual cair do cavalo: depois da primeira você perde o medo”.
08 de julho de 2014
Mais ou menos às 16h45, me despeço do meu avô pela última vez e me misturo à pequena multidão que conversa baixo numa sala do hospital. A sala tem uma TV. Precisamente às 17h o juiz apita o início de Brasil x Alemanha, semifinal da Copa do Mundo. Gols e condolências dançam à minha volta e eu obviamente só posso estar sonhando. Vamos para casa no intervalo. Não vejo o segundo tempo.
08 de julho de 2020
Esse estranho estado de pausa universal da pandemia faz com que todo mundo ande meio nostálgico, eu acho. Hoje faz tantos anos disso, faria tantos anos daquilo, assiste jogo antigo, relembra o mundo de antes. Enfim, exatos seis anos atrás perdemos um militante, um lutador, uma voz que faz falta mais do que nunca nesse momento. Uma figura que, assim que comecei a entender de quem se tratava, foi objeto do meu mais profundo orgulho e admiração. Mas perdemos também (nesse caso só eu e mais alguns) uma outra figura, que conheci um pouco mais cedo na vida: contador de histórias, cascateiro, generoso, bem-humorado, carinhoso. Um baita de um vovozão. Hoje eu senti muitas saudades, principalmente deste último, porque esse é o que eu amava.
notas
NE – texto publicado originalmente na página Facebook do autor.
1
Plínio Soares de Arruda Sampaio (São Paulo, 26 de julho de 1930 – São Paulo, 8 de julho de 2014), advogado, intelectual e político, desde a juventude militou em organizações cristãs e, em 1962, foi eleito deputado federal pelo Partido Democrata Cristão. Nas eleições de 2010, foi candidato à Presidência da República do Brasil pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL e ficou em quarto lugar, com boa votação.
sobre o autor
João Sampaio – bacharel em Ciências Sociais (FFLCH USP, 2019), professor de inglês, violão, guitarra e cavaquinho – atua como guitarrista, cantor e compositor nas bandas Os Amanticidas (canção popular com inspiração na Vanguarda Paulista) e Semiorquestra (música instrumental latinoamericana contemporânea). É neto de Plínio de Arruda Sampaio.