O debate sobre a volta “ao normal”, sobre a abertura do comércio ou sobre a “volta às aulas” é muito mais complexo do que a maneira em que vem sendo travado.
Porque não pode haver normalidade, tão apenas uma criminosa normalização, no fato de termos, a cada dia, uma tragédia equivalente à queda de quatro grandes aviões. Todos os dias.
Porque a repetição insistente dos números constitui já um indicador do processo de desumanização em curso incontido. E não parece suficiente tentar insistir em que não são números. São vidas humanas. São pais e mães, sogros e sogras, tios e tias, avôs e avós, mas também jovens, esposas, maridos, e, ao contrário do que nos diziam ao início, também crianças. Cada vez mais crianças.
Porque o número dos recuperados, aqueles que o curioso corredor polonês dos hospitais celebra e comemora é um autoengano. Porque o acompanhamento dos “recuperados” vem mostrando que não sabemos se a recuperação é permanente. Se há recaída. Qual o grau das sequelas, dos danos físicos e mentais que esperam o futuro dos “felizardos” da vitória momentânea.
Porque não se pode apenas (grifo no apenas) dizer não. Todos sabem que escolas, juntamente com bares, restaurantes, clubes e outros ambientes fechados com aglomeração constituem o setor com maior risco de amplificação exponencial de contaminação.
Mas todos sabem também que há famílias que simplesmente não podem atender ao apelo sensato do “fique em casa”. Porque para milhões de famílias ficar em casa não é possível. Porque pais e mães são obrigados a sair para trabalhar. Porque deixar as crianças com os avós é expô-los ao risco. Porque milhões de famílias que tem algo que possamos chamar de casa não tem água encanada, não tem esgoto e falar em álcool gel é uma afronta.
Porque uma pandemia é um problema de saúde pública e não pode ser enfrentada com decisões ou apelos pessoais. É preciso superar a discussão simplista. E isso talvez fosse, ao fim e ao cabo, possível.
O que não é possível é conviver com um governante genocida que comemora as 100 mil mortes dizendo que “a gente lamenta todas as mortes, mas vamos tocar a vida e achar uma maneira de se safar”.
A gente, quem? Tocar qual vida? E se safar de quê? De explicar os 21 depósitos de rachadinha na conta da primeira dama? Da atenção do público a todas as boiadas que continuam passando? Dos mais de trinta pedidos arquivados de impeachment? Da acusação de genocídio nas cortes internacionais?
Quem está tentando achar uma maneira de se safar? E de quê?
sobre o autor
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do IAU USP São Carlos.