Em poucos temas a narrativa criminalizante foi tão eficiente nas últimas décadas como no das “invasões” de terra.
Expressão disso é a precária, ou cúmplice, cobertura da grande imprensa do, esse sim, criminoso despejo das famílias do Quilombo Campo Grande, no sul de Minas Gerais.
Se o leitor der uma busca no Google sobre o tema, só encontrará alguma menção na grande mídia a partir da página três do buscador.
E ainda assim a chamada, da UOL, é que há “grupos” que protestam contra o despejo, ordenado por um juiz e cumprido, como se vê em vídeos na internet, com requintes de crueldade, pela PM do governador Romeu Zema, eleito em Minas Gerais pelo partido que, ironicamente, se chama Novo.
Voltemos ao começo dessa história. Uma usina falida nos anos 1990 – isso mesmo, mais de 20 anos atrás – não paga o que deve aos seus funcionários.
Elas não têm para onde ir e permanecem nas terras em que trabalhavam, criando com o tempo uma vila que congrega 450 famílias que se dedicam à agricultura familiar e orgânica.
Cientes por experiência própria das dificuldades dos trabalhadores do campo, organizam na própria comunidade uma escola que as crianças são alfabetizadas e iniciadas nas práticas da agricultura sustentável.
Essa comunidade foi capaz de incluir entre os seus produtos, o Café Guaí, considerado um dos melhores de Minas Gerias, estado que tem na produção de cafés premium um importante setor econômico.
Mas a comunidade do Quilombo não produzia apenas café e, desde o início da pandemia, distribuiu toneladas de alimentos a comunidades carentes da região.
O antigo proprietário, que ainda deve 400 milhões de reais de impostos atrasados, pediu reintegração de posse, depois de vinte anos e... ganhou. O juiz do caso ignorou o prazo de uso capião, ignorou a situação de pandemia e determinou a ação de despejo.
É expressivo dos novos tempos deste triste país que a primeira ação da PM tenha sido a de botar tratores para demolir a escola. Vou repetir para que não passe batido: um juiz ordena e o governador orienta a PM para demolir uma escola!
Depois incendeia uma plantação que dava 500 toneladas de café premium por ano. E, para concluir o ritual sádico, envia helicópteros e homens fortemente armados para remover as famílias das casas que ocupavam há vinte anos. Em plena pandemia! E para atender a um estelionatário.
Se somos capazes de olhar para isso apoiados em argumentos como direito à propriedade, violência das invasões e obrigação de atender a decisões do judiciário, é porque algo de fundamentalmente humano se perdeu em nossos corações e nossas mentes.
sobre o autor
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do IAU USP São Carlos.