O objetivo inicial desta série era refletir sobre os limites estruturais e as ameaças candentes sobre a vida política nos Estados Unidos da América, a nós usualmente vendida como a maior democracia do planeta.
Ela acabou por se focar, não por acaso, na guerra entre EUA e Rússia que, neste momento, se desenrola na Ucrânia. Sigo, nesta caracterização, olhares tão distintos como Henry Kissinger, o professor emérito de Coimbra, Boaventura Santos, o professor da Chicago University, John Mearsheimer, o geografo David Harvey, da City University de Nova York e Luiz Inácio Lula da Silva, entre outros.
Sobre o tema candente dos julgamentos morais e da guerra de versões me limito a registrar que depois do cancelamento de Dostoievsky e do estrogonofe, a coisa ficou tão vergonhosa que até o Guga Chacra está achando demais a Fórmula 1 suspender o GP da Rússia e manter o da Arábia Saudita ou o de Bahrein. Começamos, quem diria, a temer pelo seu emprego.
E o Itamarati, apesar de condenar a invasão, tem se manifestado junto com os países não alinhados (em particular com China, África do Sul, Índia e Indonésia) no sentido de evitar a expulsão da Rússia dos organismos multilaterais, o que confunde ainda mais a cabeça do pessoal que só enxerga o mundo em branco e preto ou, no momento, em azul e vermelho.
Mas a pergunta que importa agora é: a quem interessa, apesar dos apelos pelo final da mortandade, sejam eles sinceros, ingênuos ou cínicos, o prolongamento da guerra?
Para Putin, cada dia que passa aumenta seu processo de demonização, isolamento internacional e risco de descontentamento interno.
A Zelensky, obviamente interessa prolongar ao máximo esse inesperado bafejo da sorte que o transformou, na mídia e provavelmente na sua própria cabeça, no improvável herói, aplaudido por mandar jovens despreparados enfrentar blindados e soldados profissionais.
Mas é a Biden, mais do que ninguém, que interessa o prolongamento do conflito.
Porque atende ao complexo industrial militar que está recuperando mercado para seus produtos e serviços, aí incluídos os “voluntários” combatentes internacionais.
Segundo, porque acredita que com isso pode se livrar da pecha de fraco e despreparado que marcou a desastrosa retirada do Afeganistão.
Terceiro, porque depois do bloqueio de seus grandes projetos de infraestrutura, travado por dois senadores de seu próprio partido, o apoio da população pela via do apoio à guerra parece ser a única alternativa que lhe resta para reverter um quadro que, na maioria das pesquisas, indica maior rejeição que aprovação ao seu governo.
A estratégia de Biden, de escalada verbal sem confronto militar direto, de aposta na guerra cultural e nos cancelamentos e sobretudo no recurso a essa tradição norte-americana do cerco pela fome, é empurrar para a frente seus problemas externos e internos.
O boicote econômico total à Rússia, imposto sobre as reticências dos aliados europeus, tem recebido respostas diplomáticas, mas firmes da China. A informação de que a Arábia Saudita se dispõe a discutir a possibilidade de adotar o yuan como moeda corrente no comércio com a China acendeu a luz vermelha em Wall Street.
E enquanto isso os estados governados por republicanos vão avançando sem restrições nas suas políticas de supressão de voto e do chamado gerrymandering, o redesenho dos distritos eleitorais para anular a voto democrata, de olho em novembro quando os democratas correm o risco, cada vez mais sério, de perder a maioria na Câmara e no Senado.
Quem acompanha as notícias soube que dias atrás Zelensky admitiu aceitar o compromisso de manter a Ucrânia fora da Otan. Esse acordo, costurado por Macron e Scholz, e que mostraria que a guerra poderia ter sido evitada, foi vetado por Biden.
Jânio de Freitas, um dos poucos jornalistas da velha estirpe que sobrevivem no deserto da nossa mídia, conclui que Zelensky merece estar ao lado de Putin num tribunal internacional por crimes de guerra. Eu acho justo incluir a Biden.
Afinal, não basta saber quem matou Marielle. Queremos sabem quem mandou matar.
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.