O último trimestre deste ano trará mudanças significativas, para bem ou para mal, no quadro político do continente americano e, por consequência, no equilíbrio político, militar e econômico de todo o planeta.
Enquanto o resultado das eleições de meio de mandato nos Estados Unidos apresenta prognósticos que até agora resistem ao fato novo da guerra, nesta parcela do globo abaixo do Equador, à certeza poética de inexistência do pecado agrega-se a cada vez mais sensata incerteza quanto à própria possibilidade de as eleições ocorrerem.
E caso o golpismo explícito que se mostrou uma vez mais com o fim das águas de março não consiga inviabilizar as eleições, está desde já lançado o argumento da ilegitimidade. E se nada disso der certo sempre haverá a possibilidade de inventar um jabuti como o semipresidencialismo.
Enquanto isso, a esquerda roseira e baobá, reclama uma chapa capaz de perder a eleição mantendo a pureza das intenções. Sem ladrões de merenda ou guardadores de malas, o que parece bastante justo. Mas também sem apoio no mundo real da não tão cheirosa nem limpinha política brasileira. Que aliás é tão limpinha e cheirosa quanto a de qualquer outro canto do planeta.
Do lado de cima do Equador, não parece em xeque a possibilidade de realização das eleições de novembro. Em boa parte, porque elas interessam à metade do mundo partidário que continua a negar a legitimidade da eleição de Biden e flertou com o 6 de janeiro.
São os republicanos, que agora veem nas intermediárias a possibilidade concreta de cortar a outra pata do pato, manietando a segunda metade da gestão democrata e, para alguns observadores, garantindo a hegemonia por décadas dos “vermelhos”, que lá são, ironicamente, os republicanos.
Diante da dupla ameaça dos mecanismos tradicionais da supressão de votos (evitar que os eleitores adversários votem) e do redesenho dos distritos (diminuir o peso dos distritos em que não se consegue evitar) Biden resolveu apostar suas fichas na única área em que não depende dos atualmente inatingíveis 60 votos no Senado, a orçamentária.
O pacote orçamentário enviado ao Congresso nesta semana tenta conjugar dois temas de grande repercussão popular. O primeiro é um crescimento significativo do que já é o maior orçamento militar do globo, assunto que historicamente conta com simpatia suprapartidária, neste momento potencializada com o apelo emocional da Ucrânia, explicitamente utilizado por Biden no seu pedido de apoio à proposta.
O segundo tema, de fortuna mais incerta, é a ideia de compensar o aumento da despesa militar pela via da famosa taxação das grandes fortunas. De forte apelo popular e restrita aos titulares de patrimônio superior a 100 milhões de dólares, a dúvida é se haverá apoio parlamentar para além da ala esquerda dos democratas.
Caso Biden tenha sucesso na proposta de taxação, a dúvida é se o apoio popular daí resultante será suficiente para compensar todo o arsenal de medidas de supressão de voto democrata que os republicanos não deixarão de implementar.
Se, como creem muitos analistas, for aprovado o aumento do orçamento militar e não a taxação, aqueles recursos terão de sair do já precarizado orçamento social. E nesse caso Biden deixaria de ser um pato manco porque perderia a segunda perna.
Neste canto abaixo do Equador, os muito ricos dizem que até conversariam com Lula, caso este fosse eleito, mas continuam preferindo os militares.
O fundamental, lá como cá, é que somos nós, os patos, que continuaremos pagando o pato, manco ou não.
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.