Em poucos anos, muita coisa mudou neste quarteirão. Eu gostava de conversar com um vizinho, homem alto e um pouco corcunda, neto de italianos. Era Clemente: o chaveiro mais famoso das redondezas. Vivia com a Siciliana, uma gata cor de açafrão; ela esperava seu dono ao lado de bromélias exuberantes, que davam vida ao sobradinho cinza.
Clemente era meio mágico: abria portas que pareciam fechadas para sempre. Saía cedinho, segurando uma tabuleta em que se lia: “Não se desespere! Destranco portas e corações, dia e noite”.
Além de chaveiro, ele orientava casais em crise; mais de uma vez evitou separações, amistosas e litigiosas. Era um homem magnânimo nesse tempo de guerra fratricida e racismo escancarado. Era também bom de copo, mas sábio: conhecia a fronteira da alegria eloquente com a embriaguez. Certa vez, num boteco, me contou ter atendido ao chamado de uma mulher que trancara o namorado no quarto. Ela jurava que perdera as chaves.
“Me ligou às nove da manhã de um domingo. Só que o cara estava trancado desde a noite de sexta-feira. E sem celular. Ele conseguiu arrombar a porta de madeira, mas tinha outra, de ferro. Mais de trinta horas sem comer e beber! Soltava uns miados chochos. ‘Me solta, amor... Não faço mais isso, prometo’. Minha Siciliana tinha mais voz que ele. Voz e coração”.
“E o que você fez?”
“Que trabalheira, meu. Eram duas fechaduras diferentes, para chaves sextavadas. Parecia uma cela. Destranquei a porta de ferro, ele saiu murcho, sedento e faminto. Senti pena? Não. Ele tinha sido bruto com a moça, mas só no gogó. Por isso ela não chamou a polícia. O cara foi embora. Aí, dois dias depois, me procurou. Morria de saudade da moça... Papo de arrependido. Dei outra bronca nele, mas o diabo é que ela também gostava do sujeito. Fui o mediador, falei coisas sérias, orientei os dois. Cobrei caro, e ele pagou. Levo jeito pra psicólogo? Mas não pude estudar. Dá trabalho trocar duas fechaduras... Difícil mesmo é amaciar corações”.
Clemente morreu de ataque cardíaco. Não tinha filhos. O irmão herdou a casinha, e não quis ficar com a gata nem com as flores. Então eu trouxe a bichana e as bromélias para o meu canto. Da janela, Siciliana olha o sobradinho lá embaixo, agora um bar feio e barulhento, que tira o nosso sono. Tão bela e pensativa essa felina! O que pode dizer o olhar dela? Especulo, busco palavras, e enfim me vem à mente os versos de Murilo Mendes:
“Para a catástrofe, em busca
Da sobrevivência, nascemos”.
nota
NE – publicação original do artigo: HATOUM, Milton. Chaves do coração. O Estado de S.Paulo, Caderno 2, 13 mar. 2022.
sobre o autor
Milton Hatoum é autor dos romances Dois irmãos, Cinzas do Norte e A noite da espera, entre outros.