Não se sabe se Biden está esclerosado, como alegam seus adversários republicanos, ou simplesmente ansioso com os longos meses até novembro. A declaração de que Putin deve ser retirado do poder foi um ato falho tão gritante que o Departamento de Estado teve que se pronunciar imediatamente dizendo que o presidente não quis dizer o que disse.
Como está mais do que claro que os EUA não têm o menor interesse e, portanto, não permitirão que Zelensky assine nenhum acordo de paz, a questão é saber o quê exatamente aquele ato falho revela.
Pode ser o desejo de apagar o fiasco da retirada do Afeganistão por meio da glória de se livrar de um grande inimigo “da democracia e do mundo livre” e assim inserir seu nome na ilustre linhagem dos presidentes que mataram os inimigos de ocasião, como Bush Jr. a Sadam Hussein e o Nobel da Paz Barack Obama a Bin Laden e Gaddafi.
As camadas tectônicas da geopolítica se movem em largas durações e em direções determinadas por forças profundas, mas, na microescala dos eventos, indivíduos e suas circunstancias têm um papel de aceleradores ou retardadores desses movimentos.
A hipótese de que o ego de Biden esteja mobilizado nessa direção não exclui nem anula a preocupação, dele e de todo o establishment democrata, com as eleições de metade do mandato em novembro. Biden estaria então tentando evitar uma derrota que a maioria dos analistas considerava, até um mês atrás, inevitável e, talvez, definitiva.
Para alguns não é apenas o poderio econômico do império que se encontra em rota de declínio, mas também o mito da sociedade estadunidense como modelo de democracia. Afinal, boa parte da população acredita que a vitória de Biden foi fraudada e a quase totalidade da representação republicana no Congresso e no Senado considera legítima a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Nossa cultura eleitoral, por mais problemática que seja, nos ajuda pouco a entender as distorções daquela que a grande mídia nos vende como a maior democracia do planeta.
Estamos acostumados a estranhar o sistema de eleição indireta que permite que um presidente possa obter a maioria dos votos individuais e não ser eleito. Anacrônico ou não, isso expressa o caráter particular do federalismo estadunidense. Mas as distorções do sistema político são muito maiores e não tão conhecidas.
Nessa democracia tão particular, as eleições são realizadas numa terça-feira de novembro, que não é feriado. Ou seja, o trabalhador assalariado depende de autorização do patrão para se ausentar ou de se dispor a perder um dia de salário para exercer um voto que não é obrigatório.
Esse é apenas o primeiro dos mecanismos da chamada supressão de voto, um conjunto de manobras legais para dificultar ou impedir o voto de setores determinados da sociedade, muito especialmente a população negra e, em menor medida, latina.
No Brasil os partidos precisam convencer seus eleitores a votar. Lá o esforço é duplo: convencer os seus a votar e evitar o voto dos adversários.
Como não há uma legislação eleitoral unitária, os estados têm autonomia para definir os requisitos para votar; o que consta na cédula eleitoral; se o voto pode ser enviado pelo correio: quais os prazos e quem são os responsáveis pela apuração e por eventuais recursos e uma infinidade de etc.
Os estados sob governos republicanos perderam o pudor e estão deformando as regras e sistemas de votação em boa parte do país, na maior supressão de voto das comunidades negras, tradicionalmente democratas, em décadas.
Biden tentou aprovar via legislação federal, o estabelecimento de limites para a supressão de voto, mas não conseguiu nem mesmo a coesão de sua bancada.
A derrota desse projeto em janeiro e o reconhecimento já assumido de que o grande programa de infraestrutura também não será aprovado deixaram aos democratas o patriotismo guerreiro como última esperança ante o provável tsunami de novembro.
Funcionou para Clinton, Bush e Obama. Funcionará para Biden?
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.