Um dos erros da esquerda e da direita democrática (ser cuja existência empírica, ao menos no Brasil, está posta à prova) nas décadas seguintes à chamada redemocratização, foi denominar os 21 anos de ditadura aberta como “regime militar”.
As evidências de participação ativa de grandes empresários e do governo dos Estados Unidos, obtidas a partir da liberação ao público dos arquivos dos seus setores de inteligência, nos obrigaram a atualizar a caracterização para regime ou golpe civil-militar ou empresarial-militar.
Mesmo assim, a compreensão de que os militares atuaram numa articulação orgânica que passava pelo grande capital, pelos conglomerados de comunicação, pelos serviços militares e de inteligência estadunidenses e pelas outras ditaduras do continente, ficou restrita a alguns setores da esquerda ou de historiadores e cientistas sociais.
Isso ajuda a entender que, diante da polarização social, política e eleitoral exacerbada pela aproximação das eleições de outubro, ainda se mantenham ilusões no descolamento de uma parcela do empresariado, ou dos porta-vozes da chamada direita democrática, em relação ao projeto bolsonarista.
Pode-se compreender que em certo momento a crença na possibilidade de uma “terceira via” tenha seduzido alguns setores do empresariado ou da imprensa. Houve muita energia e muito tempo investidos em tentar inventar alguém que soubesse usar os talheres, mas mantivesse o cardápio bolsoguedista de arrocho aos trabalhadores e venda do país.
Diante da consolidação das pesquisas de intenção de voto que mostram o esvaziamento da ilusão da terceira via e o crescente “risco” de uma vitória de Lula no primeiro turno, que dificultaria um golpe apoiado no argumento da ilegitimidade das urnas eletrônicas, muita gente começou a sair do armário.
Abílio Diniz, muitas vezes citado como um empresário “próximo a Lula” realizou uma live com Paulo Guedes em que insistia com o ministro para “melhorar a comunicação” e explicar melhor à população “os benefícios das reformas e da política econômica”. Ficamos curiosos para ver as peças publicitárias que explicarão aos milhões de brasileiros jogados abaixo da linha de pobreza que sua fome é só discurso de esquerdista e seu desemprego é muito bom para o país.
Porta voz de setores que reclamavam que a candidatura Lula não apresentava um programa, a Folha de S.Paulo dedicou seu exemplar desta terça-feira a desancar o documento preliminar que o PT abriu para discussão dos demais partidos da frente. “Museu de propostas anacrônicas” ou “platitudes” são algumas das adjetivações pelas quais os jornalistas do empresário Luís Frias avisam que, apesar do pluralismo que é o argumento de venda de seu jornal, ele vai mesmo ficar com as “reformas” de Bolsonaro e Guedes.
Na semana passada o Estadão já havia superado a sua “difícil opção” de 2018. No país de Bolsonaro, Mourão, Villas Boas e Braga Netto, o jornal dos Mesquita não teve dúvidas em cravar que Lula, em uma declaração sobre o PSDB, “mostrou seu inequívoco caráter autoritário”.
Mas nada superou em originalidade o vídeo em que o presidente do Bradesco, Octávio de Lazari Jr., começa por relembrar sua passagem pelo 39º Batalhão de Infantaria Motorizada, explica que foi no exército que aprendeu todos os valores que o levaram à presidência do banco e termina, num recurso de duvidoso gosto dramatúrgico, confessando que “passam os anos, mas algumas coisas não mudam. E o soldado 939 Lazari continua de prontidão”.
De fato, algumas coisas não mudam. O Bradesco está, como sempre esteve desde a sua fundação por Amador Aguiar, no apoio às ditaduras e às políticas de arrocho e desnacionalização.
Mas há uma novidade que seria ingênuo ignorar. Posições de empresários pró-Bolsonaro até agora vieram, sobretudo, de vídeos de jantares e reuniões vazados, intencionalmente ou não.
A novidade é que este é um vídeo institucional, com o logo do banco no início e no final, de forma a não dar margem a dúvida: o banco é um soldado de prontidão, a serviço do golpe.
Deve-se agradecer a sinceridade. E parar de acreditar em contos de fadas de grande capital democrata.
sobre o autor
Carlos Alberto Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.