A União Internacional de Arquitetos – UIA, criada em 1948, é uma organização não governamental que “atua como uma plataforma de compartilhamento de conhecimento, ajudando a criar soluções inovadoras e colaborativas para o avanço arquitetônico, com foco particular no desenvolvimento sustentável” (1). O seu 27º Congresso Mundial de Arquitetos foi realizado, pela primeira vez, em solo brasileiro, na cidade do Rio de Janeiro.
Como resultado documental desse encontro, a Carta do Rio 2021 (2) apresenta conclusões e propostas para as cidades do século 21. A estrutura da Carta está organizada de acordo com as “quatro linhas temáticas” dos debates, ou seja: diversidade e mistura; fragilidades e desigualdades; mudanças e emergências; transitoriedade e fluxos.
Reorganizamos os temas ou ideias relacionadas na Carta em outro agrupamento: condicionantes da arquitetura e do urbanismo; urbanismo; arquitetura; e arquitetos e urbanistas. Esta organização alternativa está apresentada acima, em um quadro/resumo, e detalhada ao final do texto principal, como anexo. A quantidade de alusões (e, analogamente, a ênfase dada) aos tópicos relacionados a cada título está indicada entre colchetes.
Considerações
A partir dessa reorganização, podemos fazer as seguintes observações:
a) O alto número de alusões às questões sociais (24 menções) não corresponde a uma grande variedade de ideias, mas à repetição de três temas principais: redução de desigualdades, redução da pobreza e busca do bem-estar social;
b) O capitalismo e o mercado são apresentados como inimigos da sociedade;
c) Há uma grande preocupação com a diversidade, nas várias inter-relações que ela pode e/ou deve ter com a arquitetura e o urbanismo;
d) Surpreendeu o baixo número de alusões à pandemia de Covid-19. Essencialmente, é mencionado que a pandemia explicita fragilidades sociais. Não são apresentadas propostas arquitetônicas ou urbanísticas para o enfrentamento prático de situações emergenciais similares no futuro;
e) Pareceu-nos baixa também a ênfase dada pelo texto à importância da educação e do conhecimento, de forma geral, e em particular na arquitetura e no urbanismo;
f) Por outro lado, há adequada ênfase na abordagem do conflito entre democracia e autoritarismo, assim como na preocupação com a sustentabilidade ambiental e com questões sanitárias e relacionadas à saúde pública;
g) Ao contrário do observado no tópico de questões sociais, no tópico urbanismo e cidades o grande número de alusões às questões relacionadas (25 menções) corresponde também a uma abrangente variedade de ideias;
h) Como é usual no meio, há uma ênfase muito maior nas questões gerais de urbanismo (34 menções) do que nas de arquitetura (apenas 17 menções);
i) Os profissionais arquitetos e urbanistas são mencionados apenas duas vezes;
j) As palavras BIM e digital, por exemplo, não são mencionadas no texto. Ainda que haja a repetição um pouco vaga da palavra tecnologia ou, ainda, “novas tecnologias”.
A Carta do Rio 2021 dá destaque muito maior ao que chamamos de “Condicionantes” (83 menções) do que ao próprio Urbanismo (34 menções) ou à Arquitetura (17 menções). Parece-nos muito difícil que um estudante do 3º ano do ensino médio que esteja interessado em se tornar um arquiteto leia o texto e se apaixone pela arquitetura ou pelo urbanismo – ou, pelo menos, opte por se inscrever no processo de seleção para o curso...
Arquitetura e o Urbanismo são artes sociais, colaborativas, com grande investimento de recursos e que impactam na vida não de um indivíduo, mas de milhões deles. Portanto, são indissociáveis de suas condicionantes. Além disso, o que somente um dado profissional pode fazer se torna sua responsabilidade. Ainda assim, a arquitetura e o urbanismo não são apenas suas condicionantes ou sua função social.
Talvez como consequência direta da pandemia de Covid-19, os temas relacionados à saúde pública e ao saneamento ganharam destaque, sem qualquer sentido pejorativo “higienista”. No caso específico do saneamento básico, entendemos que valeria a pena indicar a conveniência de associar os altos investimentos necessários para a infraestrutura enterrada com os gastos comparativamente baixos de proceder a um redesenho urbano nas áreas degradadas (favelas e periferias, conforme citado na condicionante urbanismo e cidades).
A postura anticapitalista dos colegas arquitetos e urbanistas, explicitada no texto, nos leva a uma outra reflexão: será que temos competência para destruir o Mercado, mas não a temos para torna-lo parceiro na produção de boa Arquitetura, de bom Urbanismo, e de boas Cidades? Será esta postura a mais produtiva, mais eficaz, e que trará melhores resultados para a sociedade?
Finalmente, o nome da primeira linha temática, “diversidade e mistura”, nos pareceu muito apropriado, pois a convivência e o conhecimento e respeito mútuos entre os diferentes (ou seja, entre todas as pessoas) é que, em nossa visão, podem construir um caminho efetivo, adequado, harmônico e duradouro em direção a “cidades acolhedoras e saudáveis, onde povos e culturas diversas possam conviver em paz e em harmonia”.
notas
1
Union Internationale des Architectes – International Union of Architects (website official) <https://bit.ly/2IJd0rd>.
2
UIA2021RIO. Carta do Rio de Janeiro “todos os mundos, um só mundo, arquitetura-cidade 21”. Rio de Janeiro, 27º Congresso Mundial de Arquitetos, 2021 <https://bit.ly/3xPms5X>.
sobre o autor
Paulo Bernardelli Massabki é arquiteto com atuação principal na área de projeto, funcionário da Superintendência do Espaço Físico da USP (SEF-USP), tendo atuado como docente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Guarulhos.
ANEXO – Uma outra organização para o estudo da Carta do Rio 2021
1. Condicionantes da Arquitetura e do Urbanismo [83]
Este título agrupa os tópicos: questões sociais; capitalismo e mercado; minorias e diversidade; saúde e Covid-19; participação, democracia e autoritarismo; ecologia e qualidade ambiental; conhecimento e educação; estado; a palavra paz.
1.1. Questões sociais [24]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: redução das desigualdades; redução da pobreza; bem-estar social; enfrentamento do fenômeno migratório contemporâneo.
Constatações: aumento da expectativa de vida; redução das taxas de natalidade; situação precária de refugiados.
1.2. Capitalismo e mercado [3]
O capitalismo em geral e o capitalismo financeiro em particular são apresentados no texto como tendo “caráter autoritário e predatório”, além de hegemônico, subordinando o “aparelho de Estado”.
1.3. Minorias e diversidade [6]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: atender demandas das minorias (classe social, gênero, sexualidade, raça, culturas tradicionais, imigrantes); centro da cidade como “lugar de expressão da diversidade”; vazios urbanos e adensamentos urbanos devem absorver a diversidade social, econômica e cultural.
Tópicos apresentados como negativos ou a serem combatidos: racismo, homofobia, xenofobia e misoginia.
1.4. Saúde e Covid [7]
Constatações: a pandemia de Covid 19 como fator que explicita fragilidades sociais; “relação da arquitetura com os aspectos primordiais da saúde pública”.
1.5. Participação, democracia e autoritarismo [11]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: tolerância; “gestão democrática do território”; “processos de participação popular”; dar “voz à pluralidade de realidades e às diversidades sociais, étnicas e de gênero”; não “priorizar soluções absolutas”; “promover o debate”; “valorização do patrimônio histórico e cultural”.
Tópicos apresentados como negativos ou a serem combatidos: “esvaziamento do pensamento crítico e do debate político”; “desfiguração dos processos democráticos”; “ressurgimento de regimes autocráticos”.
1.6. Ecologia e qualidade ambiental [16]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: desenvolvimento urbano sustentável; recuperação dos recursos hídricos; biodiversidade.
Tópicos apresentados como negativos ou a serem combatidos: degradação do habitat / meio ambiente; desperdício de recursos e esgotamento de recursos vitais; mudança climática; desequilíbrio ecológico; falta de água potável.
1.7. Conhecimento e educação [6]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: educação; respeito pelas artes e ciências; relação construtiva entre o saber técnico dos arquitetos e urbanistas e o saber popular dos demais agentes atuantes no território; [novas] tecnologias atendendo necessidades humanas.
Tópicos apresentados como negativos ou a serem combatidos: “submissão dos meios científicos e tecnológicos ao interesse das corporações”
1.8. Estado [9]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: espaço urbano coletivo planejado e administrado pelo Estado.
Tópicos apresentados como negativos ou a serem combatidos: Estado submisso ao Capitalismo ou às “Corporações”; ausência do Estado em áreas carentes.
1.9. A palavra “paz” [1]
“[...] cidades acolhedoras e saudáveis, onde povos e culturas diversas possam conviver em paz e em harmonia”.
2. Urbanismo [34]
Aqui consideramos os tópicos: Urbanismo e Cidades; Mobilidade e Transporte; Serviços Públicos.
2.1. Urbanismo e cidades [25]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: espaço público como lugar de interação social; “cidades ajustadas às exigências contemporâneas”; cidades mais justas e equitativas; “ressignificação dos espaços de moradia e da cidade”; valorização dos centros como espaços democráticos e de diversidade; atendimento às demandas das minorias (classe social, gênero, sexualidade, raça, culturas tradicionais, imigrantes); adensamento em vazios urbanos com usos mistos, espaços e serviços públicos, áreas verdes, novas tecnologias, diversidade; suprir favelas e periferias de infraestrutura e serviços urbanos; redução das fragilidades e desigualdades sociais através da universalização dos serviços públicos; desenho urbano com soluções democráticas e inclusivas; espaços de transição “sem priorizar soluções absolutas”; espaço urbano coletivo planejado e administrado pelo Estado, com políticas públicas democráticas, combate às fragilidades e desigualdades sócio espaciais; pedestre como protagonista, com prioridade nos espaços e nos fluxos; valorização do patrimônio histórico e cultural; preservação do ambiente.
Constatações: ocupações urbanas informais.
Tópicos apresentados como negativos ou a serem combatidos: urbanização extensiva, com ocupação ilegal de mananciais, florestas e áreas de proteção ambiental; expansão da ocupação urbana.
2.2. Mobilidade e transporte [5]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: meios de deslocamento eficientes e não poluidores; ênfase no transporte público e nos meios ativos (pedonal, bicicleta); transporte com atendimento efetivo das necessidades das populações; prioridade ao pedestre.
2.3. Serviços públicos [4]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: redução das fragilidades e desigualdades sociais através da universalização dos serviços públicos.
3. Arquitetura [17]
Temas: arquitetura; habitação.
3.1 Arquitetura [10]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: uso de materiais locais e mão de obra local; adaptabilidade do ambiente construído; valorização do patrimônio histórico e cultural; preservação do ambiente; licitações com projetos completos; redução da pobreza; diversidades sociais, étnicas e de gênero; políticas públicas democráticas;
3.2. Habitação [7]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: dotar moradias precárias de segurança, salubridade e infraestrutura; localização adequada; financiamento para famílias carentes; considerar o atendimento às diversidades; assistência e assessoria técnica permanentes para habitações de interesse social.
4. Arquitetos e urbanistas [2]
Tópicos apresentados como positivos ou a serem almejados: compromisso com a coletividade; interação construtiva entre o conhecimento técnico dos arquitetos e urbanistas e o saber popular.