Mesmo numa época marcada pela espetacularização da violência nos novos “esportes”, no cinema, nos programas de televisão e pelo consequente amortecimento das sensibilidades e da memória, distintos eventos dos últimos dias chamaram a atenção e provocaram reações de indignação.
Uvalde é uma pequena cidade do Texas subitamente famosa, não por seus atributos próprios, mas por ser palco de (mais um) massacre numa escola, com o trágico saldo de dezenove crianças e dois professores brutalmente assassinados por um jovem de dezoito anos que, previamente, havia ferido sua própria avó.
Massacres em escolas promovidas por jovens desequilibrados com acesso a armas de repetição já constituem uma lamentável série nos Estados Unidos, desse a mais famosa delas, na também pequena cidade de Columbine, Colorado, que completou 23 anos no passado mês de abril. Os dois autores, dezessete e dezoito anos, foram mortos no local, depois de assassinarem um professor e dez alunos.
Passado tanto tempo, Columbine ainda marca a memória contemporânea, especialmente após o documentário Tiros em Columbine, dirigido por Michael Moore em 2002, ter vencido o Oscar de melhor documentário e da série American Horror Story ter incluído uma referência num dos episódios da primeira temporada.
Nem só de escolas se alimenta o estado-unidense culto à morte, cevado nos desequilíbrios individuais das sociedades contemporâneas, mas sobretudo no poderoso lobby da indústria de armas que impede qualquer restrição ao acesso a armas automática e de repetição.
Dez dias antes de Uvalde, um atirador de dezoito anos matou, por motivação racista confessa, dez pessoas num supermercado da comunidade negra de Buffalo, estado de Nova York.
No mesmo dia do massacre de Uvalde, um outro ocorria na comunidade de Vila Cruzeiro, zona norte do Rio de Janeiro, em que o recorrente pretexto de uma operação antitráfico deixou o recorrente saldo de mortes, majoritariamente jovens e negras.
Desta vez foram 25 mortos, a segunda maior “marca” desse trágico festival, perdendo apenas para o massacre do Jacarézinho, ocorrido há pouco mais de um mês atrás, com 29 famílias enlutadas.
Um grupo de pesquisa da Universidade Federal Fluminense registrou mais de 590 ocorrências policiais oficiais (sem contar massacres de grupos de extermínio) que resultaram, entre 2007 e 2021, em mais de 2.370 mortes civis e dezenove de policiais.
No meio desse verdadeiro Brazilian Horror Story destacou-se o episódio dantesco do assassinato por asfixia de gás letal de Genivaldo de Jesus Santos, preto, de 29 anos e portador de esquizofrenia.
Abordado por agentes da Polícia Rodoviária Federal por dirigir moto sem capacete, apesar de um sobrinho ter avisado que ele estava sob o efeito de medicamentos, foi jogado no camburão e asfixiado numa reedição nada extemporânea das câmaras de gás.
Episódios distintos, mas expressão de uma cultura da violência cada vez mais presentes neste início de século, eles mostram semelhanças importantes, mas também diferenças gritantes entre os Estados Unidos e o Brasil.
De comum, obviamente os interesses dos fabricantes de armas, sua poderosa capacidade de lobby e uma onipresente cultura da violência. Nos Estados Unidos, apoiados na larga tradição da 2ª emenda à Constituição, que impede restrições ao armamento. O detalhe pouco mencionado é que ela remonta a 1791, quase dois séculos antes das modernas armas automáticas.
Outra semelhança é que a representação parlamentar, fortemente financiada pela indústria armamentista, não reflete a vontade da população. Como destacado recentemente mais de 75% dos brasileiros não concorda com a posição de Bolsonaro de facilitar armas. Mesmo nos Estados Unidos, amplas maiorias de republicanos e democratas são favoráveis a alguma limitação de acesso a armas, por exemplo, por parte de pessoas com doenças mentais.
As diferenças também são relevantes. Enquanto no grande irmão do Norte os republicanos reclamam que o tema não pode ser politizado e pedem orações pelas vítimas e suas famílias, nesta terra de Pindorama o presidente, que dirige moto sem capacete, chama Genivaldo de “marginal”.
E quem pergunta por que nos EUA poderosos movimentos de massa como o Black Lives Matters tentam reagir á violência estrutural das polícias enquanto no Brasil não há maiores reações a esses massacres, talvez devesse se perguntar por que a nossa mídia ignora – ou minimiza – o protesto da população de Umbaúba, em Sergipe, terra do infausto Genivaldo.
Mortes negras por aqui importam menos.
sobre o autor
Carlos A. Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.