Boa tarde a todos e todas.
Cumprimento os presentes agradecendo o convite para participar dessa mesa que busca expressar o reconhecimento da comunidade acadêmica da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP ao papel do professor Carlos Lemos nessa instituição.
Respeitosamente saúdo o professor. Espero por meio de minhas palavras e vivências expressar minha própria gratidão ao mestre que conformou as bases de minhas atividades como arquiteta e preservacionista, mas também o que pude observar do papel que seu legado tem para minha geração e para as seguintes.
Peço antecipadamente desculpas se, eventualmente, abusar da primeira pessoa. Se o fizer será com esse objetivo, o de trazer à luz o que vi ser feito e que beneficiou muitos.
Como emociona essa homenagem e esse reconhecimento à atuação tão relevante do educador Carlos Lemos. Sim, é seu papel de professor aquele que ele próprio destaca com especial ênfase e relevância em sua autobiografia Viagem pela carne. Texto em que ele nos proporciona com mais um patrimônio dentre os muitos que se acumulam em seu extenso percurso profissional como arquiteto, professor e preservacionista. Texto que nos permite acompanhar seu caminho de investigador sobre sua própria existência, passando pela busca de suas raízes, por seus passos de formação intelectual, e sua trajetória de vida.
Lemos, nesse livro, vai atrás de suas origens e entremeia suas memórias, lembranças e vivências com relatos de antepassados. Caminha, buscando entender nos percalços de aprendiz, as matrizes de suas vocações e talentos. O faz discorrendo sobre como cada etapa profissional foi se constituindo e desdobrando em atuações variadas. Fases nas quais reconhecemos sempre seu olhar atento e sensível, cada vez mais investigativo sobre as marcas materiais de nossa cultura.
E é assim aceitando, como ele, que sua grande vocação foi ensinar, que tentarei verificar como esse empenho em compartilhar seus conhecimentos se expressou para além dos limites das salas de aula dessa casa, a FAU USP, na qual atuou por mais de cinquenta anos. Trabalhando com outros colegas professores, também pioneiros do atual Departamento de História, desbravou territórios e ampliou fronteiras.
Como aluna lembro, com meus colegas, de sua prosa fluida colorindo com palavras os mapas que desenhava a mão na lousa. Geografias relativas aos processos econômicos e culturais paulistas e brasileiros. Fala que se materializava nas imagens narradas de desenhos de paisagens, artefatos, edifícios e detalhes construtivos. Construções ilustradas a seguir em slides produzidos em suas muitas andanças desbravadoras. Sambladuras, rabos de andorinha, cachorradas, alpendres e taipais registrados em diapositivos cuja qualidade se manifestava em contraponto a algum mais singelo, feito sem o rigor necessário por aluno menos treinado. Aprendiz logo corrigido por ele, nas apresentações de seminário ou monografias.
Como orientanda na pós-graduação há que se rememorar sua atitude tranquila, aparentemente amétodo, palavra dele. Um autodidata em muitas das suas investigações de temas originalmente concebidos. Mas, na verdade, orientador com postura atenta aos descaminhos ou rumos equivocados pelos quais ocasionalmente enveredávamos. Desvios de seu modo de pesquisar e refletir aos poucos introjetado por nós, mesmo que não plenamente conscientes do aprendizado que íamos absorvendo.
E quanto método e rigor há no seu olhar que enfatiza a busca do entendimento do que chama “condicionantes do partido”: imposições sobre a materialização das edificações compreendidas a partir das conjunturas dos processos econômicos e legislações; características dos sítios naturais, materiais disponíveis e biografias de autores e de contratantes. Aspectos que ensinou a esmiuçar e verificar nos distintos territórios estudados. Atento para a identificação da recorrência de padrões da cultura ancestral e a contribuição das injeções de inovação por agentes de transformações sociais e dos modos de construir.
Lemos também nos guiava na busca dos documentos mais adequados. Em época, pré-internet e pré-digitalizações. Período em que dirigir-se ao arquivo menos conveniente poderia significar meses de trabalho desperdiçados. Nos alertava ainda sobre o excesso de apego a determinados achados, quando a dificuldade em encontrar documentos e o prazer da descoberta era confundido com o conteúdo do que se procurava: às vezes apenas uma data, ou o mero nome de um construtor. Aquilo, afinal, era apenas o documento, não a elaboração a seu respeito.
Por outro lado, também fazia observações quanto à fluidez do texto quando, mais uma vez, o apego à documentação obtida, transformava a redação em extensos relatórios enfadonhos.
Todos esses comentários vêm para ressaltar a meticulosidade do professor experiente cuja precisão manifestava-se em breves e suscintas indicações.
Não raras vezes, abria sua própria casa para reuniões de orientação; dividindo generosamente seu espaço pessoal e suas habilidades de refinado gourmet, apreciador da boa gastronomia e dos bons vinhos.
Mas em que outros campos mais foi professor? De que outras formas o mestre compartilhou seus saberes e reflexões?
De sua notável e volumosa produção de livros vale destacar a generosidade de comunicar-se com públicos mais amplos em seus “primeiros passos”. O que se deu, por exemplo, ao tentar explicar sua visão sobre O que é patrimônio histórico, na famosa coleção de mesmo nome.
Essa atitude de relacionar-se com o público extramuros acadêmicos está na base de suas publicações na grande imprensa, cujos artigos posteriormente foram reunidos em livros.
É o caso do Dicionário da arquitetura brasileira, livro referência para os estudiosos da cultura construtiva nacional. Eram, na origem, verbetes relativos a pesquisas sobre a arquitetura tradicional, publicados aos poucos em revista especializada.
Essa postura ampliou-se ao longo dos anos com textos na grande imprensa dedicados, sobretudo, a discutir São Paulo. Discorreu sobre aspectos da melhoria de suas condições urbanas e a preservação de remanescentes edificados que sobreviveram ao ritmo de transformações violentas do século 20.
Com esses textos Carlos Lemos foi plantando sementes de conhecimento e possibilidades de reflexão sobre a necessidade de salvaguardar paisagens e edificações. Não por saudosismo, mas por seu valor descoberto e como matriz de escolhas futuras mais consequentes e projetos mais ajuizados.
E afinal, é com a palavra preservação que menciono a relação de Carlos Lemos com a salvaguarda das marcas materiais de nosso passado edificado. Embora, em suas memórias, ele não tenha dedicado tantas páginas aos dez anos em que atuou no então recém-criado Condephaat, o conselho de preservação do Estado de São Paulo, que ajudou a conceber e implantar; não há como explicar aquele órgão e colegiado sem avaliar a marca seminal do que ali projetou.
Não há tão pouco como não lembrar seu apadrinhamento do Departamento do Patrimônio Histórico do Município ao indicar seu primeiro diretor, seu colega da FAU USP, Murillo Marx. Ou sua presença recorrente ocupando cadeiras nos conselhos de preservação, inclusive o do Iphan nacional.
Neste âmbito de intensa troca entre universidade e preservação do patrimônio, devemos valorizar e muito seu pioneirismo com Benedito Lima de Toledo ao tentarem conciliar preservação e planejamento urbano. Na lei Z8-200 de 1975, que identificava e arrolava extensa lista de imóveis, valorizando a área central, sua paisagem e edifícios variados. Conciliação ainda não alcançada ou compreendida nos planos diretores de lá para cá. Afinal, quando se trata de patrimônio ambiental urbano, a lista era para ter sido apenas o começo.
Talvez, de algum modo subjugado pelas frustrações advindas das paisagens e edificações perdidas, da cidade que se renova desordenada sobre as marcas da destruição, dos descaminhos de administradores insensíveis para as questões culturais, não veja que, ainda que parcialmente em relação a seus ambiciosos objetivos como diretor do Condephaat, muito foi feito a partir do que deixou desenhado.
O Condephaat estruturou-se a partir de pesquisas de identificação e inventários de reconhecimento de conjuntos urbanos, fazendas e engenhos. Investigações realizadas por jovens arquitetos cujo olhar também foi conformado por esses trabalhos de levantamentos arquitetônicos e fotográficos que Lemos contratou, e por ele coordenados. Pesquisas cartoriais também foram feitas, reunindo dados sobre registros populacionais e testamentos. Pouco desse material está publicado, mas a rica documentação permanece nos arquivos à espera de mais ampla divulgação.
Nas escolhas iniciais sobre o que tombar no Condephaat, Carlos Lemos trazia as marcas de sua formação de arquiteto moderno. Orientações reforçadas por seu convívio, com a mais vanguardista e contemporânea produção de seu tempo, a de Oscar Niemeyer, com quem trabalhou.
O Condephaat valorizava a tradicional arquitetura paulista atuando também em estreita cooperação com a estrutura da regional do Iphan, alicerçada com a marca da condução de Lucio Costa de valorização do passado colonial como base do presente moderno.
Nesse sentido, pouca possibilidade havia da preservação se voltar para a então ainda volumosa produção de arquitetura eclética de São Paulo.
Lemos, porém, com novas perspectivas fruto de sua participação como aluno de curso sobre patrimônio organizado pela FAU em meados da década de 1970, passou a rever e ampliar categorias do que tinha valor para a preservação. E escreveu sobre isso nas informações técnicas realizadas para o Condephaat.
Reconhecia, em um mesmo processo de tombamento, que aquela edificação cujo mérito ele mesmo pouco tempo antes afirmara ter importância restrita a uma dimensão local ou ser desprovido de valor arquitetônico, como então se dizia, tinha dimensão mais ampla a ser considerada, a de valor cultural. Daí a reconhecer a própria produção arquitetônica e suas características intrínsecas foi um passo. Atitude que muito nos ensinou.
Foi nesse período que Carlos Lemos atuou na intensa luta pela preservação da edificação eclética da Escola Normal da Praça da República, a Escola Caetanos de Campos. Projeto de Ramos de Azevedo, chefe do mais produtivo escritório no período de renovação arquitetônica paulista da virada do século 19 para 20 em São Paulo. Profissional de certo renome, mas até então pouco estudado e valorizado criticamente.
A luta desigual do pequeno e jovem Condephaat contra o inquestionavelmente necessário Metrô de São Paulo, que preconizava a demolição integral do prédio, foi quase de David contra Golias.
Carlos Lemos defendeu tecnicamente a demanda liderada por centenas de ex-alunos. Conduzido em princípio pelo reconhecimento do valor memorial da edificação, suporte físico do aprendizado de excelência do projeto educacional republicano, mas logo mais envolvido em compreender Ramos de Azevedo e seu papel.
E é nesse impasse de preservar o patrimônio cultural vinculado à renovação política, de costumes, da arquitetura e da cidade que o professor Carlos Lemos revela uma capacidade de revisão de suas próprias convicções. Essa reavaliação, que se deu aos poucos, pavimentou o caminho para que estudássemos e preservássemos a arquitetura eclética – nós seus alunos e os técnicos da preservação em São Paulo.
Em meados dos anos 1980 éramos pelo menos quatro seus orientandos pesquisando o ecletismo paulista. Outros tantos se seguiram e hoje disseminam o aprendizado como pesquisadores ou professores pelo país. Em São Paulo, Recife, Rio de Janeiro entre outros centros.
Esse episódio de salvamento da Escola Caetano de Campos ampliou as escolhas do Condephaat do que preservar e contribuiu para renovar as perspectivas do que a comunidade como um todo passou a enxergar e progressivamente reconhecer como patrimônio.
Pouco mais tarde Lemos também teve a ação valiosa de salvar do descarte e trazer para a FAU parte dos arquivos da produção do extinto escritório do mesmo Ramos de Azevedo. Essa documentação primordial sobre o mais proeminente agente da modernização construtiva paulista é hoje parte substancial do notável acervo de projetos originais da biblioteca da instituição.
Com mais pesquisadores atraídos para o tema passou a estudar e divulgar essa produção documentada. Contribuindo assim para lançar luz sobre o ecletismo paulista, suas obras e agentes.
Relembro por fim o que talvez seja muito pouco conhecido.
Em 1980, ao sair do Condephaat que ajudara a implantar, Lemos, seguramente preocupado com os destinos da preservação oficial paulista, propôs um curso de extensão na FAU USP. Dedicado, inequivocamente, a formar os quadros técnicos do Condephaat. Estes quadros haviam se ampliado muito rapidamente, com a contratação de profissionais sem formação anterior na área.
Esse curso está na matriz da concorrida disciplina relativa às técnicas tradicionais paulistas, que ofereceu regularmente e com grande sucesso na Pós-graduação ao longo dos anos seguintes. Curso estruturado na divulgação de seu conhecimento de história da arquitetura do Brasil e sua filosofia da preservação. Situado nessa imprescindível interface entre ensino e prática. Como esquecer as formadoras viagens de estudo? Sítio Santo Antônio, Capela de São Miguel, Palacete Palmeira, Fazenda Iperó, Chácara do Quinzinho...
Não cabe aqui falar de mais dimensões de sua vida acadêmica, profissional ou como artista plástico, pois outros o fizeram com mais propriedade. Quis somente iluminar essas marcas de sua atuação nos campos da identificação e proteção da cultura material paulista que foram compartilhadas com minha geração.
Com Carlos Lemos aprendemos a identificar com menos preconceitos a arquitetura brasileira, São Paulo, sua paisagem e os agentes que as construíram.
Para concluir ouso dizer em nome de seus alunos, orientandos, preservacionistas e cidadãos paulistanos:
Muito obrigada, Carlos Lemos, por ter se dedicado tanto a compartilhar seus conhecimentos, por nos ter legado um patrimônio que nos ajuda a seguir em frente!
nota
NE – A cerimônia de outorga do título de Professor Emérito da Universidade de São Paulo a Carlos Lemos ocorreu no dia 25 de novembro de 2022 com sua presença e as seguintes participações: Mônica Junqueira de Camargo, chefe do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto iniciou a jornada relatando a importância de Lemos não só para a instituição, mas para o ensino de arquitetura e a defesa do patrimônio cultural brasileiro; a seguir, José Lira e Hugo Segawa, professores da FAU USP, e Silvia Wolff, professora da FAU Mackenzie, comentaram o imenso arco de contribuições do homenageado (por estar nos Estados Unidos, o texto de José Lira foi lido por Mônica Junqueira); a seguir, Carlos Lemos leu seu texto de agradecimento pela honraria; por fim, Eugenio Fernandes Queiroga, diretor da FAU USP, oficializou a outorga do título e encerrou a cerimônia.
sobre a autora
Silvia Ferreira Santos Wolff é docente e pesquisadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP. Técnica aposentada do Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural do Estado de São Paulo – Condephaat. Dentre seus trabalhos estão os livros Jardim América e Escolas para a República, publicados pela Edusp.