Se Lula conseguir ganhar esta eleição, teremos tido a oportunidade de presenciar um momento épico da história da democracia, e não apenas a brasileira.
Quais as teorias ou análises capazes de explicar que um operário metalúrgico, saído de 580 dias de prisão, resultado de uma longa campanha de difamação e de um conjunto de irregularidades jurídicas reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, tenha vencido em primeiro turno, com 6 milhões de votos de diferença, o presidente candidato à reeleição?
Da mesma maneira, quais as teorias ou análises capazes de explicar que as pesquisas de intenção de voto, dos mais diferentes institutos de pesquisa, tenham acertado, dentro das margens de erro, a votação de Lula e errado, de maneira consistentemente subestimada, a votação de Bolsonaro?
O resultado do primeiro turno, aliado à ordem com que a apuração foi sendo divulgada, criou o curioso efeito de que os vitoriosos se sentissem derrotados e os derrotados, vitoriosos. Afinal, conversas de coach à parte, a sensação de vitória ou derrota, de êxito ou fracasso, depende menos dos resultados concretos do que de sua comparação com as expectativas.
Criou-se a expectativa de uma vitória de Lula no primeiro turno e a falta de 1,53% dos votos válidos para a sua concretização gerou a compreensível sensação de vitória do bolsonarismo e a menos justificada sensação de derrota dos lulistas, que tardaram alguns dias a sair do torpor.
Como sabe aquela ínfima minoria da população que acompanha a diário as informações e comentários sobre a política, as tentativas de explicação para o crescimento de Bolsonaro na reta final são muitas e continuam aparecendo.
A primeira explicação foi o efeito reverso das expectativas de decisão no primeiro turno: muitos eleitores antipetistas da falecida terceira teriam acorrido de última hora ao voto útil em Bolsonaro para evitar a vitória imediata de Lula.
Depois falou-se nas dificuldades da segmentação das pesquisas em função da desatualização dos dados demográficos do IBGE. Uma hipótese corrente, de superestimação do número dos mais pobres, tendencialmente favoráveis a Lula, não é coerente com a miséria crescente que vemos nas ruas.
Nos últimos dias têm surgido denúncias de ação subterrânea nas redes sociais em escala ainda maior do que em 2018. Apesar da louvação da grande mídia sobre as “instituições funcionando” e sobre o heroísmo de Alexandre Morais à frente do TSE, a capacidade do Judiciário evitar os mecanismos reais de fraude (que não estão obviamente no funcionamento das urnas) são tão irrisórias quanto as multas aplicadas a inserção de propagandas proibidas pelo Tribunal.
Por fim, detectou-se uma anormalidade estatística em relação às eleições passadas: o comparecimento inusual de eleitores com mais de setenta anos, legalmente isentos da obrigatoriedade do voto.
Apenas então se lembrou que uma portaria do INSS definiu, no início deste ano, que o comprovante de voto serviria como prova de vida para recebimento da aposentadoria, evitando o comparecimento às torturantes filas da Previdência. E que uma disparada massiva de mensagem subterrâneas informava que esse benefício só seria válido se o voto fosse 22!
O nome disso é fraude. E uma investigação aprofundada poderia levar à anulação da candidatura responsável, mas é obvio que isso não acontecerá. Porque “as instituições funcionaram” ao longo destes anos, para permitir que a funcionamento do Estado chegasse à beira de seu desmonte ou aparelhamento finais.
Se Lula chegar a vencer as eleições, o terá feito contra a vontade e o empenho do grande capital, da mídia corporativa, de fortes setores do judiciário, da corrupção generalizada do orçamento secreto, da capacidade de mobilização das milícias e das novas tecnologias que são, internacionalmente, dominadas pelos grupos “neocom”, eufemismo utilizado para disfarçar a extrema direita raivosa e sem escrúpulos.
Quem achar excessiva a adjetivação dê uma procurada nas capivaras do senhor Steve Bannon ou dos irmãos Kock.
A comparação entre a adesão aos eventos de rua dos dois candidatos e as projeções de intenção de voto mostra um problema que é tentador pensar como uma diferença entre o espaço público como locus da democracia do século 20 e as redes ditas sociais como seu sucedâneo no século 21.
Não me atrevo a dizer se as democracias estão morrendo ou o que passarão a ser as eleições. Mas esta eleição é, provavelmente, a última de sua espécie e Lula, ganhe ou perca, é, certamente, o seu último grande herói.
sobre o autor
Carlos Alberto Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.