Da janela daquela sala a gente podia ver o rio de águas pretas, tão largo que a outra margem se confundia com a floresta. Era a sala da última série do ginásio, o nono ano atual. Os professores eram exigentes, alguns, austeros; um e outro, carrascos, quase sádicos. Raros e bem-aventurados os que combinavam saber, humor e ironia.
Entre os estudantes misturavam-se demônios e anjos em porções desiguais. Havia os mais sensíveis e solidários; os espertos, sempre alertas ao perigo iminente; os raros contemplativos e solitários, alheios a esbórnias; os alucinados, que imaginavam monstros nos corredores e no pátio interno do colégio. Mas o verdadeiro monstro estava entre a gente: era o grande demônio, promessa de cafajeste, quem sabe de assassino. Nós o suportamos durante aquele interminável ano do ginásio: tempo de humilhação, violência e ameaças.
Ele, o grande demônio, tinha um apelido: Minotauro. Não era corpulento, nem tão forte quanto pensava; nada tinha de touro nem do mito antigo. Mas o jeito pesado de andar, as palavras e os gestos obscenos, a risada de deboche e a total incapacidade de se concentrar durante uma aula davam a impressão de que o Minotauro estava ali para nos infernizar. Várias vezes foi expulso da sala, e quando a direção o suspendia por uma semana, voltava mais feroz.
Durante o recreio no pátio, descontava a punição agredindo as alunas com chulices, e rasgava com um compasso o braço dos mais tímidos e medrosos. No entanto, esse ser covarde tinha adeptos fervorosos, que o reverenciavam até a idolatria. Não sabíamos o motivo desse amor enfermiço ao Minotauro; talvez ignorância, ou um tipo de espelhamento, tão inevitável quanto misterioso.
No segundo semestre, a maioria dos alunos já não suportava o Minotauro e seus bajuladores. Juntos, formavam uma súcia embrutecida, meio infantilizada. Não liam, ignoravam as disciplinas de ciências, perturbavam as aulas, escreviam mentiras na lousa, caluniando professores. Os que eram punidos macaqueavam seu líder: voltavam mais agressivos.
Eu riscava no calendário até os dias do mês seguinte, mas a ânsia parecia entorpecer o ritmo do tempo. Por fim, em dezembro nos livramos do Minotauro e de seu bando. Sem eles no colégio e na nossa vida, festejamos o Natal e o Ano-Novo.
Uns dias atrás, um amigo manauara daquela época, falou do fim deste ano de 2022, e lembrou um verso do poeta lusitano: “A grande dor das coisas que passaram”.
Dor que o tempo não apaga.
nota
NE – publicação original do artigo: HATOUM, Milton. A grande dor das coisas que passaram. O Estado de S.Paulo, seção Cultura & Comportamento, 27 nov. 2022.
sobre o autor
Milton Hatoum é autor dos romances Dois irmãos, Cinzas do Norte e A noite da espera, entre outros.