Antes das eleições presidenciais já se sabia que Lula teria duros desafios consecutivos. O primeiro era ganhar a eleição; o segundo, tomar posse e o terceiro, governar.
Em geral a leitura desses desafios identificava os obstáculos de maneira direta com o golpismo bolsonarista em seus segmentos militares, empresariais ou milicianos, que seria ingenuidade supor que não tem conexões entre si e simplismo imaginar que sejam exatamente a mesma coisa.
Menos de um mês depois do anúncio do resultado eleitoral, já está claro que o “terceiro turno” das eleições vai se prolongar por muito tempo. Supondo que a saúde de Lula (e sua vida, se a segurança conseguir garanti-la) lhe permita chegar ao final do mandato, é dado como certo que não se candidataria à reeleição à beira dos 80 anos. Isso faz com que diferentes setores da vida política estejam contribuindo para o que pode se configurar como uma tempestade perfeita antes mesmo da posse.
A “terceira via” e seus arautos na imprensa só parecem mais conformados com os resultados da eleição do que o bolsonarismo. O debate, para chamá-lo de maneira generosa, sobre a “responsabilidade fiscal” supostamente ameaçada pela PEC da transição, mostra tanto o cinismo servil de grande parte dos “analistas” da mídia quanto a dificuldade da esquerda em explicitar ao grande público o que foram estes seis anos de sequestro da democracia e rapinagem econômica.
Foi necessário que a equipe de transição expusesse o fato nu e cru de que o orçamento de 2023 é uma grande farsa, armada de forma consciente entre Bolsonaro, Guedes e Lira, para que o país fosse minimamente alertado para o fato de que nem Bolsonaro, se eleito, poderia cumprir suas promessas de campanha, porque ele e as lideranças do centrão quebraram o país para garantir a eleição que ele perdeu e elas não.
E foi preciso que boa parte da mídia comprasse vergonhosamente a tese da “irresponsabilidade fiscal” de Lula para que as redes passassem a lembrar que nos últimos quatro anos a gestão bolsoguedista estourou o teto em 5 vezes mais do que Lula está pedindo para não começar o governo fragilizado pela impossibilidade de cumprir qualquer compromisso de campanha.
Os argumentos de que a equipe de transição quer um cheque em branco para eliminar um teto de gastos constitucional, que nenhum outro país capitalista do planeta tem, é ridículo e cínico.
Ridículo porque ignora que a recepção entusiástica à eleição de Lula por parte da chamada comunidade internacional não é mero apreço pela democracia, mas interesse em voltar a investir no país com um mínimo de segurança e previsibilidade.
E é cínico, porque pretende esconder que o verdadeiro cheque em branco para a corrupção e o clientelismo mais rasteiro está escondido no eufemismo das “emendas de relator.”
Mas, como sempre, a questão não é saber a razão (óbvia) pela qual a extrema direita política e os fundamentalistas do mercado escondem esse jogo e sim superar rapidamente incapacidade que a esquerda e a direita democrática têm demonstrado de fazer a denúncia e o esclarecimento.
Ninguém no mundo político, goste ou não de Lula, nega a ele sensibilidade política e disposição para a negociação e a composição. Mas se os setores democráticos e os movimentos sociais não exercerem, desde já, a pressão em defesa de seus interesses, num governo que será, política e economicamente, muito mais difícil que os anteriores, o terceiro turno será vencido por quem perdeu os dois primeiros.
Para completar esse quadro e desmentir a ficção do Bolsonaro abatido e apático, o jornal The Washington Post, em sua edição de quarta-feira, informa que Eduardo Bolsonaro esteve na residência de Trump em Mar-A-Lago (Flórida), depois do segundo turno e foi aconselhado a continuar denunciando fraude nas eleições e atacando o Judiciário.
A complacência, para dizer o mínimo, do governo e das Forças Armadas com os bloqueios e manifestações terroristas comprovam que segue em marcha o projeto de criar uma “invasão do Capitólio” à brasileira.
Deveria estar claro que, do outro lado, só a retomada de uma ampla mobilização popular pela legitimidade democrática e pela garantia do Estado de Direito poderá evitá-lo.
sobre o autor
Carlos Alberto Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.