Darcy Ribeiro: antropólogo, educador, universitário, escritor, exilado etc. Em cada uma dessas atividades seria possível qualificá-las do mesmo modo: primeiro, relevando o fato que Darcy Ribeiro fundia ideia e ação em cada uma de suas atividades; segundo, que seu interesse se voltava sempre para a processo de formação do povo brasileiro, seja analisando sua origem, seja comprometendo-se com a construção de seu futuro; e terceiro, que sua postura mestiça incorporava a necessidade de permanência dos saberes tradicionais (em particular dos povos originários), sem jamais se afastar das necessidades de seu tempo. Nesse sentido, é indubitavelmente um ser moderno, mesmo trafegando constantemente por saberes arcaicos. Um ser moderno, subsumido em uma vontade de igualdade e justiça, usando como veículo para materializar essa vontade o seu engajamento no espectro reformista do trabalhismo.
Mas por que estudar Darcy Ribeiro hoje? Já há alguns anos o país (e o mundo) estão cada vez mais marcados pela exceção e por um deslocamento da opinião pública rumo à direita. A democracia representativa vigente, uma democracia burguesa, é cada vez mais frágil e as demais estruturas de participação (como conselhos) são pressionadas para reduzir suas possibilidades de transformação, enquanto o Estado é colocado (ou recolocado, melhor dizendo) à serviço das classes dominantes. Dois aspectos nos chamam particularmente a atenção: a redução da qualidade do debate público (pelo menos na grande audiência) e um conformismo tácito que imobiliza grande parte da juventude.
Darcy Ribeiro foi uma personalidade que teve influência nos rumos da história do Brasil em um período que compartilhava certas características desse tempo atual. De um momento em que a democracia se ampliava e era a trilha que poderia conduzir às reformas em benefício da maioria da população (começo dos anos 1960), passa para uma fase de polarização política presente no conjunto da sociedade – sofrendo com o mesmo tipo de intervenção midiática. Ou, ainda, da perspectiva de mudanças estruturais à interrupção por movimentos reacionários e, consequentemente, tornando a exceção um elemento fixo do governo do Estado. Parece difícil distinguir se a frase se aplica ao golpe sucedido pela ditadura civil-militar em 1964 ou ao golpe sucedido dos governos Temer e Bolsonaro.
É nesse primeiro recorte temporal (e geográfico) que Darcy Ribeiro produziu boa parte de sua produção acadêmica, criou muitos de seus “fazimentos” e deixou uma obra intelectual fecunda e criativa. Ressalte-se ainda que no segundo momento de protagonismo político em que reaparece na história do país, já durante o processo de redemocratização, Darcy Ribeiro não se furtou ao engajamento partidário e a consequente disputa por cargos eletivos. Talvez esse comprometimento tenha enublado a divulgação e o espraiamento de sua obra no país, culminada, aliás, por um livro magistral escrito já no fim de sua vida – O povo brasileiro, publicado em 1995 (1).
Marcadas as similaridades entre aquele tempo (da construção de Brasília ao exílio no período ditatorial) e o atual (dos governos de corte progressista e popular do PT ao protofascismo bolsonarista), é mais do que pertinente estudar Darcy Ribeiro. Mais ainda, levando-se em consideração a densidade da obra intelectual darciniana, sempre tentando interpretar a América Latina e o Brasil, na tentativa de pensar (e criar) um modelo de sociedade que coadune com nossa história, nossa cultura e nosso ambiente, é que entendemos que seja importante sua retomada. Nessa obra fica claro que os arranjos sociais, econômicos e políticos que prestam aos países centrais não são suficientes para nós. E, também, entendemos que uma obra maiúscula como essa, reverenciada por muitos dos intelectuais de sua época, não teve a difusão que julgamos compatível.
Pode restar a dúvida, no entanto, sobre por que estudar Darcy Ribeiro no campo da arquitetura. A resposta mais objetiva é notar que há coincidência entre uma das fases de maiores realizações da arquitetura brasileira e os momentos de protagonismo do nosso personagem. Darcy Ribeiro ocupou altas posições em instâncias decisórias do poder executivo que ensejaram a criação de vários marcos arquitetônicos, como o Sambódromo e o Memorial da América Latina. Mas, além disso, também impulsionou o ensino da disciplina em níveis de graduação e pós-graduação. Nas redes intelectuais em que tomou parte, sempre esteve próximo a arquitetos e urbanistas. Finalmente, sua obra foi lida por muitos dos principais arquitetos do país (e fora dele).
É preciso discutir o papel da Darcy Ribeiro na efetiva construção desses marcos arquitetônicos derivados de sua ação administrativa ou política. É necessário avançar a discussão a respeito de suas definições pedagógicas ou institucionais no campo da arquitetura e urbanismo. É preciso resgatar personagens arquitetos e urbanistas que estiveram presentes ou tangenciaram suas redes intelectuais. E o mais importante, refletir sobre o papel da arquitetura e urbanismo na construção do país melhor, mais justo e mais adequado à suas condições históricas, culturais e ambientais, a partir das lições de Darcy Ribeiro (2). Por tudo isso, a arquitetura também comemora seu centenário!
notas
1
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
2
Darcy Ribeiro, Montes Claros MG, 26 de outubro de 1922 – Brasília DF, 17 de fevereiro de 1997.
sobre o autor
Fabrício Ribeiro dos Santos Godoi é mestre e doutorando em arquitetura e urbanismo pelo IAU USP. Trabalha com planejamento universitário.